Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente – Parte 58
3. A Educação e o Currículo
Todo fim envolve necessariamente um meio; um ou vários caminhos. Determinar um fim é essencial em muitos aspectos de nossa vida. A Educação sempre terá um fim específico que traz consigo diversas associações e implicações.
Podemos concordar com o mesmo propósito, mas não necessariamente com o caminho a ser percorrido. Ainda que não seja o foco aqui, é importante mencionar que mesmo concordando com o propósito e os meios, poderemos ter grandes discrepâncias metodologicamente conforme formos analisando os recursos de que dispomos.
Esse ou esses meios, é denominado de currículo.
“Currículo” é uma transliteração do latim “curriculum” que é empregado tardiamente, sendo derivado do verbo “currere”, “correr”, “prosseguir”. “Curriculum” tem o sentido próprio de “corrida”, “carreira”; um sentido particular de “luta de carros”, “corrida de carros”, “lugar onde se corre”, “hipódromo” e um sentido figurado de “campo”, “atalho”, “pequena carreira”, “corte”, “curso”.[1]
Como é óbvio, o currículo é um meio para alcançar um objetivo, não um fim em si mesmo.
No sentido educacional, até onde se sabe, a palavra foi usada primeiramente pelo professor francês da Universidade de Paris, Petrus Ramus (1515-1572)[2] em texto atribuído à sua autoria mas, só publicado postumamente, Professio Regia (1576),[3] pelo jurista e teólogo Johannes Thomas Fregius (1543-1583)[4] de Basiléia, um “calvinista em potencial”.
Em 1633, a Universidade de Glasgow se referiu a um atestado de graduação como “curriculum”, sendo o primeiro uso do termo na literatura inglesa que temos conhecimento.[5]
Atualizando o emprego da palavra dentro de nossos propósitos, Martins define currículo da seguinte forma:
A totalidade das experiências organizadas e supervisionadas pela escola e que são desenvolvidas sob sua responsabilidade; experiências essas selecionadas com o objetivo de promover o desenvolvimento integral da personalidade do educando, ao mesmo tempo em que visa satisfazer às necessidades da sociedade.[6]
Desse modo, é necessário que entendamos que não existe currículo neutro. Ele sempre estará ligado à determinada compreensão do mundo; a uma filosofia educacional que tem a sua própria cosmovisão que determinará a sua prática. A concepção da “neutralidade” curricular, significa uma percepção pouco ou nada “neutra” da realidade.
A educação como ato político – estamos comprometidos com determinada compreensão das necessidades da “pólis” – deve ter um planejamento consciente: insisto, a neutralidade inexiste.[7] O planejamento é um ato moral que deve se coadunar com os objetivos propostos: os meios revelam meus fins!
Essas proposições trazem algumas questões que, em seu bojo, contêm outras que se relacionam com o nosso tema: qual o objetivo da Educação? Qual a concepção de homem que temos? De quais recursos dispomos? Que tipo de homem pretendemos “formar”?
Como curiosidade, cito que em 1987, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, fez a seguinte pergunta: “Qual será a opção do educador: reproduzir a atual sociedade ou lutar para transformá-la?”.[8]
Em 1657, o pastor e educador Comênio (1592-1670), “Pai da Didática Moderna”, escreveu:
Prometemos uma organização das escolas, por meio da qual (…). Todos se formem com uma instrução não aparente, mas verdadeira, não superficial mas sólida; ou seja, que o homem, enquanto animal racional, se habitue a deixar-se guiar, não pela razão dos outros, mas pela sua, e não apenas a ler livros e a entender, ou ainda a reter e a recitar de cor as opiniões dos outros, mas a penetrar por si mesmo até ao âmago das próprias coisas e a tirar delas conhecimentos genuínos e utilidade. Quanto à solidez da moral e da piedade, deve dizer-se o mesmo.[9]
A proa e a popa da nossa Didáctica será investigar e descobrir o método[10] segundo o qual os professores ensinem menos e os estudantes aprendam mais; nas escolas, haja menos barulho, menos enfado, menos trabalho inútil e mais sólido progresso; na Cristandade, haja menos trevas, menos confusão, menos dissídios, e mais luz, mais ordem, mais paz e mais tranquilidade.[11]
As escolas são oficinas da humanidade.[12]
Sabendo de seu grande desafio e, ao mesmo tempo, confiante em Deus, ora ao Senhor demonstrando a sua fé:
Comênio ora a Deus neste sentido:
Oh! que Deus, tendo misericórdia de nós, nos faça encontrar um modo e um método geral, capaz de nos ensinar a voltar para Deus todas as coisas que estão fora de Deus, e de que se ocupa a inteligência humana, e a voltar para o estudo das coisas celestes todas as ocupações desta vida, nas quais se embaraça e se imerge o mundo! Assim teríamos uma espécie de escada sagrada, pela qual, mediante todas as coisas que existem e que se fazem, as nossas mentes subiriam, sem obstáculo, até ao supremo e eterno senhor de todas as coisas, fonte da verdadeira felicidade.[13]
Como um de seus princípios educacionais, Comênio visava “ensinar tudo a todos”,[14] começando desde bem cedo, já que é mais difícil reeducar o homem na vida adulta.[15]
Essas anotações parciais nos faz refletir sobre os dias atuais, onde o papel da educação continua sendo um tema de debate constante. Vivemos em uma época em que o conhecimento está mais acessível do que nunca, mas, ao mesmo tempo, enfrentamos o desafio de formar indivíduos capazes de pensar de maneira crítica e independente à luz da Palavra de Deus. É essencial que, ao refletirmos sobre os objetivos educacionais e os meios para alcançá-los, não percamos de vista a importância de um ensino que vá além da mera transmissão de informações, buscando efetivamente o desenvolvimento integral do ser humano, criado à imagem de Deus
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] Cf. Currículo: In: António de Morais Silva, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 10. ed. Edição revista, corrigida, muito aumentada e actualizada, Lisboa: Editorial Confluência, (1955), v. 3, p. 773; Laudelino Freire, Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: A Noite-Editora, (1941-1942), v. 2, p. 1676; Currículo: In: Adalberto Padro e Silva, ed. et. al. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, 4. ed. São Paulo: Mirador Internacional; Melhoramentos, 1980, v. 1, p. 523; Currículo: In: Cândido de Oliveira, Super. Geral, Dicionário Mor da Língua Portuguesa, São Paulo: Livro’Mor Editôra Ltda. (1967), v. 2, p. 700; Currículo: In: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, p. 512; Curriculum: In: Ernesto Faria, organizador, Dicionário Escolar Latino-Português, 3. ed. Rio de Janeiro: Cia. Nacional de Material de Ensino, 1962, p. 270; Antônio Gomes Pena; Marion M. dos Santos Pena, Curriculo: In: Antônio Houaiss, ed. Enciclopédia Mirador Internacional, v. 7, 3124.
[2] Morto na Noite de São Bartolomeu, quando milhares de huguenotes foram massacrados.
[3] P. Ramus, Professio Regia, Basileae (1576). Quanto à importância das ideias de Ramus na tentativa de reformulação do currículo medieval, veja-se: https://www.scielo.br/j/heduc/a/z6q8yBVyS kVrhMtS3QYgNSv/ (Consulta feita em 21.03.2025)
[4]Johannes Thomas Fregius era um ramista convicto sendo importante na divulgação do método de Ramus que foi influente no pensamento de Comênio. (Vejam-se: David Hamilton, Towards a Theory of Schooling, New York: Routledge, 1989, p. 55; David Hamilton, Comênio e a nova ordem: In: Pro-posições, v. 4 nº 2[11] Julho de 1993, [p. 7-19], p. 7, 13; https://www.scielo.br/j/heduc/a/z6q8yBVySkVrhMtS3QYgNSv/ (Consultado em 21.03.2025).
[5] Cf. David Hamilton, Towards a Theory of Schooling, New York: Routledge, 1989, p. 47; Oxford English Dictionary, “Curriculum,” p. 152
[6]José do Prado Martins, Administração Escolar: Uma Abordagem Crítica do Processo Administrativo em Educação, São Paulo: Atlas, 1991, p. 135. Outras definições: “Currículo, do ponto de vista pedagógico, é um conjunto estruturado de disciplinas e atividades, organizado com o objetivo de possibilitar seja alcançada certa meta, proposta e fixada em função de um planejamento educativo. Em perspectiva mais reduzida, indica a adequada estruturação dos conhecimentos que integram determinado domínio do saber, de modo a facilitar seu aprendizado em tempo certo e nível eficaz” (Antônio Gomes Pena; Marion M. dos Santos Pena, Currículo: In: Antônio Houaiss, ed. Enciclopédia Mirador Internacional, v. 7, p. 3124). “O currículo (…) é uma série de atividades que a geração mais velha planeja para a mais moça na esperança de que, por meio da execução dessas atividades, os moços se tornarão a espécie de homens e mulheres, considerados como a ideal pela sociedade de que deverão vir a ser membros. (…) O currículo escolar, portanto, é a herança social organizada para a sua rápida assimilação por mentes imaturas” (William F. Cunningham, Introdução à Educação, 2. ed. Porto Alegre, RS.; Brasília: Editora Globo; INL., 1975, p. 244,247). Contraste-se aqui, as expressões, “mentes imaturas” com “geração mais velha” (Veja-se, também: James R. Gress, ed. Curriculum: An Introduction to the Field, Berkeley, California: McCutchan Publishing Corporation, 1978, p. 6ss.).
[7]Vejam-se: Antonia A. Lopes, Planejamento do Ensino numa Perspectiva Crítica da Educação: In: Ilma P.A. Veiga, Coordenadora, Repensando a Didática, Campinas, SP.: Papirus, 1988, p. 41-52; José Silvério B. Horta, Planejamento Educacional: In: Durmeval T. Mendes, (Coord.) Filosofia da Educação Brasileira, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 226-227; Walter E. Garcia, Planejamento e Educação no Brasil: A Busca de Novos Caminhos: In: Acácia Z. Kuenzer; Maria Julieta C. Calazans; Walter E. Garcia, Planejamento e Educação no Brasil, São Paulo: Cortez; Autores Associados, (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo, v. 37), 1990, p. 39.
Uma opinião diferente, encontramos em Phillip H. Coombs, Planejamento Educacional, p. 10, quando declara: “Planejamento educacional é ideologicamente neutro” (Veja-se uma discussão mais ampla deste ponto In: Hermisten M.P. Costa, A Propósito da Alteração do Currículo dos Seminários Presbiterianos: Reflexões Provisórias, São Paulo: 1996, 29p.).
[8] Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, Questionando a Avaliação: In: Avaliação, 1987, p. 5.
[9]João Amós Coménio, Didáctica Magna, 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1985], XII, p. 163-164.
Comênio (1592-1670) foi denominado por Michelet (1798-1874) de “Pai venerável da pedagogia” (J. Michelet, Nos Fils, 6. ed. Paris: Librairie Internationale A. Lacroix Et Cª, Éditerus, ©1869, 1877, p. 182). Segundo Compayré, ele o também o chamou de “O Galileu da educação” (Gabriel Compayré, Histoire Critique des Doctrines de L’Éducation en France Depuis le Seizième Siècle, 2. ed. Paris: Librairie Hachette Et Cie. 1880, v. 1, p. 249). Vejam-se: J.-P. Piobetta, João Amos Comenius: In: Jean Château, et. al. Os Grandes Pedagogistas, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, [p. 117-133], p. 131; M.F. Sciacca, O Problema da Educação, São Paulo: Herder; EDUSP., 1966, p. 396). Um de seus princípios educacionais era: “ensinar tudo a todos” (Didáctica Magna, X.1. p. 145). Ele foi o último bispo da Igreja dos Irmãos Boêmios. (Cf. Will S. Monroe, Comenius and the Beginnings of Educational Reform, London: William Heinemann, 1900, p. 61; Paul Kleinert, Comenius: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, Chicago: Funk Wagnalls, Publishers, 1887 (Revised Edition), v. 1, p. 517; John C. Osgood, Comenius: In: Harry S. Ashmore, Editor in Chief. Encyclopaedia Britannica, Chicago: Encyclopaedia Britannica, INC., 1962, v. 6, p. 100; Salomon Bluhm, Johann Amos Comenius: In: Lee C. Deighton, editor-in chief. The Encyclopedia of Education, (s. cidade): The Macmillan Company & The Free Press, 1971, v. 2, p. 301; “Comenius,” In: Rev. John M’Clintock; James Strong, eds. Cyclopaedia of Biblical, Theological, and Ecclesiastical Literature, [CD-ROM], (Rio, Wi USA, 2000), v. 2, p. 128; Ruy Afonso da C. Nunes, História da Educação no Século XVII, p. 49). Há evidências de que ele teria sido convidado por John Winthrop Jr. (1606-1676), a presidir o Harvard College (1642), cargo que de fato nunca ocupou. (Veja-se: Paul Kleinert, Comenius: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, v. 1, p. 518; Salomon Bluhm, Johann Amos Comenius: In: Lee C. Deighton, editor-in chief. The Encyclopedia of Education, (s. cidade): The Macmillan Company & The Free Press, 1971, v. 2, p. 302; N. Abbagnano; A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía, Novena reimpresión, México: Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 303; Joaquim Ferreira Gomes, Introdução à Didáctica Magna: In: João Amós Coménio, Didáctica Magna, p. 17; Inez Augusto Borges, Educação e Personalidade: a dimensão sócio-histórica da educação cristã, São Paulo: Editora Mackenzie, 2002, p. 59. John C. Osgood, Comenius: In: Encyclopaedia Britannica, 1962, v. 6, p. 100). Maiores detalhes sobre a vida e o pensamento de Comênio podem ser encontradas in: Hermisten M. P. Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 112-117.
[10]Refletindo as críticas já frequentes no século XVI, o século XVII, inspirado em vários autores, inclusive em Descartes (1596-1650), insiste na importância e discussão concernente ao método.
Reif (1930-2002), comenta:
Se se procurasse selecionar um simples epíteto para descrever a atmosfera educacional dos inícios do século XVII, esta seria “metodológico”. Nesse período o intenso interesse pelo método que tinha prevalecido ao longo de todo século XVI parece ter chegado ao auge. Existem numerosos tratados sobre método em geral. Livros de todo tipo contendo frequentemente a palavra “método” no seu título, e autores de livros-textos anunciavam seus produtos como “metodologicamente apresentados” ou organizados em “ordem metodológica”. Mas o método sobre o qual estes insistem tem pouca conexão, se é que tem alguma, com o método científico tal como nós o conhecemos. Aquele é fundamentalmente um método pedagógico, um método pelo qual todas as disciplinas curriculares são ensinadas. (Patricia Reif, The Textbook Tradition in Natural Philosophy, 1600-1650. Journal of the History of Ideas, v. 30, no. 1, 1969, [p. 17–32]. p. 28. JSTOR, https://doi.org/10.2307/2708242. Accessed 21 Mar. 2025.
A Metafísica talvez tenha sido a disciplina que mais sofreu ataques. Ilustro − ainda que no século XVIII −, com Kant (1724-1804), que no Prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura (1787) diz:
A Metafísica, um conhecimento especulativo da razão inteiramente isolado que se eleva completamente acima do ensinamento da experiência através de simples conceitos (não como a Matemática, através de aplicação da mesma à intuição), na qual portanto a razão deve ser aluna de si própria, não teve até agora um destino tão favorável que lhe permitisse encetar o caminho de uma ciência (…). A razão emperra continuamente na Metafísica (…). Seu procedimento [da Metafísica] constitui até hoje, sem dúvida alguma, um mero tatear e, o que é pior, sob simples conceitos. (I. Kant, Crítica da Razão Pura, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores. v. 25), 1974, p. 11-12).
No prefácio da 1ª edição, 1781, já havia dito: “Houve um tempo em que esta ciência (a metafísica) era chamada rainha de todas as outras e, se tomarmos a intenção pela realidade, merecia amplamente esse título honorífico, graças à importância capital do seu objeto. No nosso tempo tornou-se moda testemunhar-lhe o maior desprezo…. (I. Kant, Crítica da Razão Pura, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 3-4).
[11]João Amós Coménio, Didáctica Magna, p. 44.
[12]João Amós Coménio, Didáctica Magna, p. 146.
[13]João Amós Coménio, Didáctica Magna, XXIV, 15, p. 365.
[14]João Amós Coménio, Didáctica Magna, X.1. p. 145.
Como seria de se esperar, o advento da imprensa trouxe consigo uma maior difusão da literatura impressa. Com isso, os livros vão se tornando mais baratos e, vai havendo de modo significativo, ainda que não generalizado, um despertamento para a alfabetização.
“Nos países reformados e nas nações católicas, nas cidades e nos campos, no Velho e no Novo Mundo, a familiaridade com a escrita progride, dotando as populações de competências culturais que antes constituíam apanágio de uma minoria”, escreve Chartier. (Roger Chartier, As Práticas da Escrita: In: R. Chartier, org. História da Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, v. 3, [p. 113-161], p. 116).
O autor sustenta que foi com o pietismo que a prática da leitura se difundiu amplamente na Alemanha. (Roger Chartier, As Práticas da Escrita: In: R. Chartier, org. História da Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, v. 3, [p. 113-161], p. 121-122. Do mesmo modo, veja-se: José Andrés-Gallego, História da Gente Pouco Importante: América e Europa até 1789, Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 103). Mais à frente, ele reconhece que a leitura e posse de livros se tornaram mais evidentes nos países protestantes:
“À frente da Europa que possui livros estão incontestavelmente as cidades dos países protestantes. Por exemplo, em três cidades da Alemanha renana e luterana – Tübingen, Speyer e Frankfurt –, os inventários com livros constituem em meados do século XVIII respectivamente 89%, 88% e 77% do total registrado. Assim, é grande a diferença em relação à França católica, seja na capital (na década de 1750 apenas 22% dos inventários parisienses incluem livros), seja na província (nas novas cidades do oeste francês a porcentagem é de 36% em 1757-1758; em Lyon, de 35% na segunda metade do século). Ao contrário, a diferença é pequena com relação a outros países protestantes – mesmo que majoritariamente rurais como, por exemplo, os da América.
“No final do século XVIII, 75% dos inventários no condado de Worcester, em Massachusetts, 63% em Maryland, 63% na Virgínia assinalam a presença de livros – o que traduz um belo progresso em comparação com o século anterior, no qual a porcentagem das melhores regiões não passava de 40%.
“Desse modo, a fronteira religiosa parece um fator decisivo no tocante à posse do livro. Nada o mostra melhor que a comparação das bibliotecas das duas comunidades numa mesma cidade. Em Metz, entre 1645-1672, 70% dos inventários dos protestantes incluem livros contra apenas 25% dos inventários católicos. E a distância é sempre muito acentuada, seja qual for a categoria profissional considerada: 75% dos nobres reformados têm livros, mas apenas 22% dos católicos os possuem, e as porcentagens são de 86% e 29% nos meios jurídicos, 88% e 50% na área médica, 100% e 18% entre pequenos funcionários, 85% e 33% entre comerciantes, 52% e 17% entre artesãos, 73% e 5% entre ‘burgueses’, 25% e 9% entre trabalhadores braçais e agrícolas. Mais numerosos como proprietários de livros, os protestantes também possuem mais livros: os reformados membros das profissões liberais têm, em média, o triplo dos seus homólogos católicos; a situação é idêntica para comerciantes, artesãos ou pequenos funcionários; e entre os burgueses a diferença é ainda maior, com bibliotecas calvinistas dez vezes mais ricas que as dos católicos.
“A essa diferença na posse do livro acrescentam-se outras que opõem a própria economia das bibliotecas às práticas da leitura. Nos países luteranos, seja qual for o nível social de seu proprietário, todas são organizadas em torno do mesmo conjunto de livros religiosos. (Roger Chartier, As Práticas da Escrita: In: R. Chartier, org. História da Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, v. 3, [p. 113-161], p. 131-133.
O autor mostra, com alguns testemunhos históricos, que toda a cultura protestante estava vinculada à leitura da Bíblia (Veja-se, Idem., Ibidem., p. 133ss.). v. 3, [p. 113-161], p. 133ss. (Ver também: José Andrés-Gallego, História da Gente Pouco Importante: América e Europa até 1789, Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 101-107).
Schaff (1852-1941) observou corretamente que:
“Para o protestante, a Bíblia é um livro popular, um livro tanto para o lar como para o santuário, tanto para a choupana como para o gabinete do erudito. Traduzida para a linguagem do leitor, ela será tão livre como o ar e a luz do sol. É o livro da vida, a mensagem do Evangelho. Como é franca a mensagem para todos os que a aceitem, assim o volume que contém a mensagem deve ser aberto a todos os que queiram ler” (D.S. Schaff, Nossa Crença e a de Nossos Pais, 2. ed. São Paulo: Imprensa Metodista, 1964, p. 172-173).
[15] “Não há coisa mais difícil que voltar a educar bem um homem que foi mal educado. Na verdade, uma árvore, tal como cresce, alta ou baixa, com os ramos bem direitos ou tortos, assim permanece depois de adulta e não se deixa transformar. (…) Se se devem aplicar remédios às corruptelas do gênero humano, importa fazê-lo de modo especial por meio de uma educação sensata e prudente na juventude” (João Amós Coménio, Didáctica Magna, Dedicatória, 18-19, p. 65).
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