Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente – Parte 57
Ódio não desejado mas, suportado
O evangelho, veja bem, não é apenas uma mensagem para as pessoas, ensinando-as como evitar a ira de Deus. É também uma mensagem sobre um reino, uma sociedade, uma nova comunidade, uma nova aliança, uma nova família, uma nova nação, um novo modo de vida, e, consequentemente, uma nova cultura. Deus nos chama a edificarmos uma cidade de Deus, uma Nova Jerusalém. − John M. Frame.[1]
Deus não precisa de grandes talentos, nem grande aprendizado, nem grandes pregadores, mas homens grandes em santidade, grandes em fé, grandes em amor, grandes em fidelidade, grandes para Deus — homens sempre pregando por meio de sermões santos no púlpito, por vidas santas fora dele. Estes podem moldar uma geração para Deus. − Edward M. Bounds (1835-1913).[2]
O ódio é criativo, tendo um arsenal enorme que se renova conforme se frustra em seus intentos malignos.[3] Nas Escrituras vemos o destilar deste sentimento especialmente manifestado contra o Senhor Jesus.
No entanto, o ódio da parte do mundo, como resultado de nossa lealdade a Deus, é evidência do discipulado. Jesus Cristo foi bem claro quanto a isso: “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim. Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário, dele vos escolhi, por isso, o mundo vos odeia” (Jo 15.18-19).
O ódio ao Filho se estende ao Pai: “Quem me odeia também a meu Pai” (Jo 15.23). Jesus diz que seus discípulos, como escolhidos de Deus, foram eficazmente chamados do mundo. O que caracteriza a diferença é o chamamento de Cristo e o seu poder transformador operado pelo Espírito por meio da Palavra. A Palavra de Deus é transformadora. É o verbo criador, renovador e recriador.
Ela opera de tal forma que nem mais conseguimos entender como podíamos viver do modo antigo e, ao mesmo tempo, como antes não enxergávamos a realidade, importância e beleza da vida cristã que agora experimentamos.
O que fazia com que o mundo odiasse os discípulos de Cristo era o fato de eles terem agora, após um confronto com a Palavra de Deus, uma vida diferente. Eles assumiram valores que expressavam a ética do Reino. O Reino não é a igreja, contudo, “o Reino se revela na Igreja”, assevera Ridderbos (1909-2007).[4]
A Igreja é vocacionada a ser o que é; não a representar um papel: uma amostragem claramente evidente do poder amoroso de Deus; um monumento vivo, histórico e visível da graça de Deus. A Igreja é a evidência concreta na história do que Deus tem proposto à humanidade.
O Reino tem valores, praxes e agendas diferentes do mundo. Por isso, o inevitável conflito. No entanto, o conflito primeiro do mundo é com Cristo, o Deus encarnado que foi rejeitado (Jo 1.11), mas, pela graça de Deus, recebido por nós (Jo 1.12). Ele mesmo disse a respeito de seus discípulos: “Eles não são do mundo, como também eu não sou” (Jo 17.14).
Devemos, portanto, aprender de Cristo. Paulo, olhando para Cristo, para as suas necessidades e as necessidades dos irmãos da jovem e confusa igreja de Corinto, os instrui: “Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo” (1Co 11.1). Aos colossenses, mostra-lhes um nobre ideal condizente com a sua nova natureza: “Buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus. Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra” (Cl 3.1-2).
Na República, Platão (427-347 a.C.), pela graça comum de Deus, tem um vislumbre dessa verdade: Referindo-se àqueles que adquiriram o conhecimento verdadeiro, demonstra como os demais saberes tornaram-se secundários: “Os que ascenderam àquele ponto não querem tratar dos assuntos dos homens, antes se esforçam sempre por manter a sua alma nas alturas”.[5]
Percebem então o conflito? O ódio do mundo é devido ao contraste existente entre os filhos de Deus e os filhos do mundo. O mundo aborrece os discípulos de Cristo pelo fato destes terem uma forma diferente de avaliação da vida. Eles olham a realidade partindo de uma perspectiva por vezes excludente. A perspectiva cristã parte da própria realidade que nos foi dada em Cristo por meio da Palavra.
Como temos dito, a realidade é aquilo que Deus diz que é, não aquilo que podemos compreender pela ótica do mundo que – pela graça comum −, mesmo conseguindo enxergar aspectos verdadeiros da chamada realidade, não consegue entender o sentido de todas as coisas.
Bonhoeffer (1906-1945) resume: “A Igreja de Cristo, a Igreja dos discípulos, foi arrebatada ao domínio do mundo. Vive no mundo, é verdade. Mas foi feita um corpo, é um domínio independente, um espaço para si. É a Santa Igreja (Ef 5.27), a Comunhão dos Santos (1Co 14.33)”.[6]
Como temos insistido, a Igreja é chamada a ser instrumento de transformação, não de acomodação. Essa transformação será operada dentro de nós e, partir daí, de forma natural em nossa visão do mundo e, consequentemente, em nossa atuação. As nossas mãos devem ser o espelho de nosso coração.
Sabemos que o modo acomodatício é o mais natural, no entanto, o desafio de Deus para nós é para transformar o mundo tendo como padrão de vida e avaliativo de todas as coisas, a mente de Cristo.
O apelo de Paulo às igrejas era frequentemente fundamentado numa questão teológica; não se amparava simplesmente em sua idoneidade ou autoridade, antes em Deus mesmo. Assim ele o faz pelas misericórdias de Deus (Rm 12.1/1Ts 2.12) e pelo Senhor Jesus (Rm 15.30; 1Co 1.10; Fp 4.2). Como cooperador de Deus exorta a que os coríntios não recebam em vão a graça de Deus (2Co 6.1); roga também pela mansidão e benignidade de Cristo (2Co 10.1).
Após falar da majestade de Deus, de sua sabedoria e glória, o apóstolo desafia a igreja a não entrar nos moldes deste mundo, antes, transformá-lo:
1Rogo-vos (parakale/w),[7] pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. 2 E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. (Rm 12.1-2).
Packer (1926-2020) e Nystrom enfatizam: “Para seguir fielmente a Cristo, os cristãos devem nadar contra a corrente cultural de todas as maneiras. Quando fazemos isso, enfrentamos ameaças ao nosso bem-estar que, se não fôssemos servos de Cristo, teríamos evitado”.[8]
A missão da Igreja no mundo inspira-se na missão harmoniosamente conferida pelo Pai ao Filho. A oração de Cristo em favor da igreja é para que ela, no cumprimento de sua tarefa, seja um instrumento divino para que o mundo creia:
18 Assim como tu me enviaste (a)poste/llw)[9] ao mundo, também eu os enviei (a)poste/llw) ao mundo. 19 E a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade. 20 Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; 21 a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia (pisteu/w) que tu me enviaste (a)poste/llw). (Jo 17.18-21).
Após a ressurreição, Jesus Cristo estabelece a conexão entre a sua vinda e a missão que seria outorgada aos seus discípulos: “Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou (a)poste/llw), eu também vos envio” (Jo 20.21).
A comunidade cristã só tem direito de se chamar assim se de fato assumir a sua função mundanizante, agir no mundo ao seu redor, influenciando com os valores do Reino que dominam a sua fé e a sua práxis.
Essa influência não é uma tarefa simples e requer, antes de tudo, uma transformação interior que permita ao cristão viver de acordo com os princípios que defende. A renovação da mente, mencionada por Paulo em sua carta aos Romanos, é essencial para que possamos discernir e seguir a vontade de Deus em nossa vida cotidiana. Esse processo de transformação contínua reafirma a nossa identidade como seguidores de Cristo e nos capacita a enfrentar os desafios e as adversidades que surgem ao nadarmos contra a correnteza cultural.
A transformação interior começa pela compreensão profunda da mensagem do Evangelho e pela disposição de viver em conformidade com os ensinamentos de Cristo. O chamado à santidade e à renovação da mente é um processo diário que exige dedicação, reflexão e oração. Paulo enfatiza que somos chamados a oferecer nossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, o que significa submeter cada aspecto de nossa vida ao Senhor e buscar a sua vontade em todas as nossas decisões.
Essa jornada de transformação não ocorre de maneira isolada, mas sim em comunhão com o povo de Deus. A igreja desempenha um papel fundamental ao apoiar seus membros em suas batalhas espirituais e ao proporcionar um ambiente onde a Palavra de Deus é ensinada, celebrada e vivida. A unidade da igreja, conforme Jesus orou, é essencial para que o mundo veja o testemunho do amor divino por meio de nossas ações e palavras.
A missão da igreja no mundo é, portanto, um reflexo da missão de Cristo. Fomos enviados para ser luz e sal, para influenciar e transformar a sociedade com os valores do Reino de Deus. Essa missão exige coragem, perseverança e uma confiança inabalável na providência divina. Assim como o Pai enviou o Filho, e o Filho enviou seus discípulos, somos enviados para continuar essa obra de redenção e transformação.
Que cada membro da comunidade cristã se empenhe em viver de acordo com esses princípios, mantendo sempre em mente a importância de se renovar continuamente pela Palavra e pelo Espírito de Deus. Assim, poderemos cumprir com alegria e fidelidade a missão que nos foi confiada, impactando positivamente o mundo ao nosso redor e glorificando o nome do nosso Senhor Jesus Cristo.
Concluo este tópico com as palavras inspiradas, ditas por intermédio do rei Salomão no livro de Provérbios: “Filho meu, guarda as minhas palavras e conserva dentro de ti os meus mandamentos. 2 Guarda os meus mandamentos e vive; e a minha lei, como a menina dos teus olhos. 3 Ata-os aos dedos, escreve-os na tábua do teu coração” (Pv 7.1-3).
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] John M. Frame, A Doutrina da Vida Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 820.
[2] Edward M. Bounds, Power Through Prayer, Alien Ebooks (p. 10). (Edição do Kindle) (Há uma edição em português: Edward M. Bounds, O poder através da oração, Editora Oxigênio, p. 4 de 81 (Ebook).
[3] Lembrei-me das ácidas palavra de Herculano (1810-1877): “O ódio é perspicaz e, quando a sua perspicácia é iludida, não lhe escasseia a faculdade da invenção. Onde falta matéria para acusações verdadeiras, a calúnia acode-lhe com recursos, tirando essas acusações do nada” (Alexandre Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, (s. indicação de lugar): Publicações Europa-América, [s.d.], v. 1, p. 91).
[4]Herman Ridderbos, La Venida del Reino, Buenos Aires: La Aurora, 1988, v. 2, p. 66.
[5]Platão, A República, 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), 517c-d.
[6]D. Bonhoeffer, Discipulado, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1984, p. 169.
[7]O verbo parakale/w tem o sentido de: implorar (Mt 8.5; 18.29), suplicar (Mt 18.32); exortar (Lc 3.18; At 2.40; 11.23); conciliar (Lc 15.28); consolar (Lc 16.25; 15.32; 1Ts 5.11; 2Ts 2.17); confortar (At 16.40; 2Co 1.4; 7.6); contemplar (2Co 1.4); convidar (At 8.31); pedir (At 9.38; 1Co 4.13; 16.15); pedir desculpas (At 16.39); fortalecer (At 20.2,12); solicitar (At 25.2; Fm 9,10); chamar (At 28.20); admoestar (1Co 4.16; Hb 10.25); recomendar (1Co 16.12; 2Co 8.6; 9.5; 1Tm 6.2).
[8]J.I. Packer; Carolyn Nystrom, O Deus que nos guia e guarda: direcionamento divino para as decisões da vida, São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 33.
[9]Primariamente, no grego secular, a palavra tinha o sentido de enviar um navio de carga ou uma frota. Somente mais tarde é que a palavra passou a indicar uma pessoa enviada, um emissário. Ver: E. von Eicken, et. al. Apóstolo: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 234-239.
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