Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente – Parte 55
Vida contracultural: perseguição e crescimento
Cristo não pintou para Seus discípulos um futuro belo nesse mundo, antes, os preparou para a opressão e perseguição. − Herman Bavinck.[1]
A Igreja no Novo Testamento logo enfrentou uma série de perseguições, geradas num primeiro momento, pelos judeus. Para citar apenas algumas, temos a perpetrada contra Estevão, que morreu apedrejado (At 7.1-60); a de Herodes Agripa I, que prendeu a Pedro e decapitou Tiago (At 12.1-3). Paulo, o antigo perseguidor do Evangelho, foi aquele que mais sofreu perseguições (At 9.23-25,29; 14.2-7,19; 16.19-24; 17.4-9, 13-15; 21.30-32).
Essas perseguições, mesmo não sendo desejadas, eram esperadas. Jesus Cristo, no primeiro sermão ou série de sermões proferidos às multidões, fala de perseguição e sofrimento. Ele não apresenta um caminho colorido, repleto de falsas esperanças, antes, adverte aos seus ouvintes que se quisessem seguir os seus ensinamentos deveriam estar preparados para ser caluniados, difamados e perseguidos.[2]
Por isso, não seria nenhuma novidade àqueles que tivessem como projeto de vida a fidelidade a Deus: “Pois assim perseguiram (diw/kw) aos profetas que viveram antes de vós” (Mt 5.10).
Mais tarde Estevão faria publicamente esta acusação aos judeus indicando a situação de frequente perseguição imposta aos profetas de Deus: “Qual dos profetas vossos pais não perseguiram (diw/kw)? Eles mataram os que anteriormente anunciavam a vinda do Justo, do qual vós agora vos tornastes traidores e assassinos” (At 7.52).
Juntamente com os princípios orientadores e identificadores dos cristãos, há promessas e, também, a descrição, ainda que sumária, das consequências da adoção dessa ética do Reino. Os cristãos, com seus valores e ensino, são diferentes e, por isso mesmo, devem saber que lhe esperam perseguições.
O Cristianismo não nos propõe a ser uma versão melhorada do velho homem, antes, há uma transformação total, um nascer de novo. A fé cristã propõe uma vida em harmonia com a nossa nova natureza. Daí o conflito de essência, consequentemente, de valores, perspectivas e comportamento.
As perseguições, portanto, conforme o ensino de Jesus Cristo, não seriam causadas por alguma idiossincrasia dos fiéis, antes, pelo seu desejo de se assemelhar a Cristo, o alvo final do cristão.
A fome e sede de justiça que deve caracterizar o cidadão do reino é totalmente odiosa e, no mínimo, incômoda ao mundo. É impossível viver coerentemente no mundo sem revelar a nossa verdadeira identidade. Pela graça, somos o que somos: cidadãos do Reino. Somos, em muitos sentidos, estranhos neste mundo, somos estrangeiros residentes. Esta estranheza causada, não deve ser buscada, antes, se manifestará de forma natural conforme assumimos coerentemente os valores do Reino.
Curiosamente, ao aproximar-se o final do seu ministério terreno, às vésperas da sua autoentrega, Jesus se despede de seus discípulos falando do Consolador e, também, das tribulações pelas quais passariam (Jo 13-16). Há aqui uma transição muito importante e significativa: o Senhor após falar de seu sofrimento, considera-o como algo vencido – o que deve servir de estímulo aos discípulos: “Estas coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33).
A cruz ‒ ainda incompreensível e inimaginável aos discípulos ‒ símbolo de vergonha, humilhação, dor e aparente derrota, faz parte essencial de sua vitória. Sem a cruz, a encarnação e a ressurreição ficam fora de contexto. Aliás, todo o seu ministério, envolvendo o seu nascimento, ressurreição, ascensão e retorno glorioso, encontra o seu sentido na cruz. Notemos, então, que a cruz não pode ser apenas um enfeite ou ornamento, antes, nos fala do pecado humano, da justiça, da santidade e do amor de Deus.[3]
Sem a cruz de Cristo não há evangelho, nem fé, e, portanto, pregação.
Os discípulos de Cristo não devem se enganar, daí o Senhor longe de lhes alimentar expectativas materiais, diz:
10Bem-aventurados os perseguidos (diw/kw)[4] por causa da justiça (dikaiosu/nh), porque deles é o reino dos céus. 11Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem (o)neidi/zw),[5] e vos perseguirem (diw/kw), e, mentindo (yeu/domai),[6] disserem todo mal (ponhro/j)[7] contra vós. 12 Regozijai-vos (xai/rw)[8] e exultai (a)gallia/w), porque é grande o vosso galardão (misqo/j)[9] nos céus; pois assim perseguiram (diw/kw) aos profetas que viveram antes de vós. (Mt 5.10-12).
Desse modo, feliz é o homem que é perseguido por causa do seu testemunho vivencial e verbal, vivendo conforme os preceitos bíblicos: bem-aventurados são aqueles que enfrentam oposição devido ao seu apego à Palavra em obediência sincera e tenaz a Deus.
Às Igrejas da Dispersão, em iminente perseguição, Pedro escreve:
14 Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados (o)neidi/zw), bem-aventurados sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus. 15 Não sofra, porém, nenhum de vós como assassino, ou ladrão, ou malfeitor, ou como quem se intromete em negócios de outrem; 16 mas, se sofrer como cristão, não se envergonhe disso; antes, glorifique a Deus com esse nome. (1Pe 4.14-16).
14 Mas, ainda que venhais a sofrer por causa da justiça (dikaiosu/nh), bem-aventurados sois. Não vos amedronteis, portanto, com as suas ameaças, nem fiqueis alarmados; 15 antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós. (1Pe 3.14-15).
A perseguição à igreja era inevitável: Havia um conflito de valores excludentes entre a mensagem do Evangelho e o mundo. Os valores propostos pelo Cristianismo eram insuportáveis para uma sociedade pagã. A fidelidade ao seu Senhor inevitavelmente geraria perseguição. O caminho para uma vida cômoda seria negar o Senhor Jesus. No entanto, para o genuíno discípulo, essa opção jamais poderia ser considerada.
Desse modo, Lucas relata a atitude dos apóstolos ao serem açoitados e proibidos de pregar a Cristo: “Eles se retiraram do Sinédrio regozijando-se (xai/rw) por terem sido considerados dignos de sofrer afrontas por esse nome” (At 5.41). Da mesma forma Paulo narra os seus sofrimentos: “Entristecidos, mas sempre alegres (xai/rw)” (2Co 6.10).
Pedro orienta e consola as igrejas perseguidas apresentando uma visão escatológica: “Alegrai-vos (xai/rw) na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na revelação de sua glória, vos alegreis (xai/rw) exultando (a)gallia/w)” (1Pe 4.13).[10]
Bonhoeffer (1906-1945), escreve com maestria:
Enquanto Jesus diz: Bem-aventurados, bem-aventurados!, o mundo está a gritar: Fora, fora! Sim, fora!… mas para onde? Para o reino dos céus. ‘Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus.’ Lá estão os pobres no salão festivo. O próprio Deus enxugará dos olhos deles as lágrimas de alegria, e serve aos famintos sua Ceia. Os corpos feridos e martirizados já estão transfigurados, e a veste do pecado e arrependimento foi substituída pela veste branca da eterna justiça. Já neste tempo a Igreja dos perseguidos sob a cruz percebe um chamado que parte daquela alegria eterna, o chamado de Jesus: Bem-aventurados, bem-aventurados.[11]
Escrevendo aos coríntios, Paulo faz um resumo do que havia sofrido pelo Evangelho de Cristo (2Co 11.23-33). Contudo, havia nele, uma visão constante que transpunha o sentimento de dor e angústia. Na prisão, escreveu aos filipenses: “Quero ainda, irmãos, cientificar-vos de que as cousas que me aconteceram têm antes contribuído para o progresso do evangelho” (Fp 1.12) e, diz mais: “Alegrai-vos sempre no Senhor, outra vez digo, alegrai-vos” (Fp 4.4). O Evangelho prosseguia em sua caminhada vitoriosa a despeito dos obstáculos erguidos contra ele.
Paulo estava convencido e, demonstrava isto na prática, que Deus nos faz vencer os obstáculos que estão à nossa frente.
A perseguição não se encerrou no primeiro século. A Igreja foi alvo de ataques físicos, morais, intelectuais e espirituais. Todavia, ao lado destas afrontas, ela pode desfrutar da presença confortadora do Espírito Santo. De fato, o Senhor Jesus não nos deixou órfãos. Ele, Ele mesmo está conosco aqui e agora, e para sempre (Jo 14.16-18/At 9.31). Deus levantou também os Pais Apologistas comprometidos com a defesa da fé cristã contra os insistentes ataques aos seus ensinamentos.[12]
Outro aspecto que apenas pontuo, é que não podemos desconsiderar as transformações pelas quais o mundo passou, atingindo o epicentro do Cristianismo com a queda de Jerusalém (70 A.D.), a expansão do Império Romano, as diversas perseguições aos cristãos, a oficialização do Cristianismo por parte de Constantino e, posteriormente, com a sua queda.
Grandes transformações cujos efeitos são de alguma forma duradouros, interferem na pregação no sentido de modelo e, especialmente de conteúdo. Foi assim durante as epidemias cíclicas da Peste Negra na Idade Média, durante a Guerra Civil americana, a Segunda Guerra Mundial e, no recente período de pandemia e redemocratização cultural em nosso país. Esse não é o meu ponto de análise, porém, como disse, quis apenas pontuá-lo. O fato é que a história nunca pode ser separada dos acontecimentos sociais. Os fenômenos se mostram na história. Os que os percebem e interpretam, também vivem na história. Não há nenhum tipo de vácuo social nos fenômenos nem no historiador que os interpreta.
No período pós-apostólico as homilias consistiam numa simples exposição popular de alguma passagem das Escrituras lida na Congregação. Esta exposição, que tinha um caráter informal – tendo pouco ou nada a ver com a retórica grega –, era acompanhada de reflexões e exortações morais.
A descrição de Justino (100-167 AD) feita por volta do ano 150, oferece-nos uma ideia de como era o culto e a pregação naquele período:
No dia que se chama do sol (domingo),[13] celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se leem, enquanto o tempo o permite, as Memórias dos apóstolos (quatro Evangelhos)[14] ou os escritos dos profetas. Quando o leitor termina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos esses belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos juntos e elevamos nossas preces. Depois de terminadas, como já dissemos, oferece-se pão, vinho e água, e o presidente, conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas preces e ações de graças e todo o povo exclama, dizendo: ‘Amém’. Vem depois a distribuição[15] e participação feita a cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos seus ausentes[16] pelos diáconos.[17]
Brown, fazendo um contraste entre os filósofos estoicos do segundo século, que se dirigiam às elites e o cristianismo, observa que os mestres cristãos difundiam amplamente o evangelho; apresentavam o cristianismo como uma moral autenticamente universalista, baseada em um novo sentimento e na igualdade de todos perante suas leis. Essa foi a revolução mais profunda do período clássico tardio. A mensagem cristã, propagada através da pregação, formou um profundo sentimento de noções morais disseminadas entre milhares de pessoas humildes.[18]
A popularidade do cristianismo – religião majoritariamente dos pobres −, trouxe inquietações por parte dos poderosos. Isso não ficou apenas no campo da especulação.
A partir do segundo século da Era cristã, mesmo sendo perseguidos, os cristãos davam o seu testemunho, sendo muitas vezes martirizados. A perseguição acompanhada por tortura e morte, era o que parecia ser o ponto final do caminho pavimentado por sua fidelidade que deixava o seu rastro de sangue e de fé.
O motivo disso era seu comportamento paradoxalmente contagiante e repulsivo (contracultural) por meio de uma conduta diferente, que procurava se pautar pela Palavra de Deus; um critério estranho à cultura fortemente estabelecida.[19]
Carta a Diogneto
Aqui se torna oportuno transcrever parte de um documento anônimo, escrito ao que parece no final do 2° século, intitulado Carta a Diogneto, que consistia numa explicação do pensamento, conduta e fé cristã, dirigida a um pagão que, impressionado com o testemunho cristão e a expansão do cristianismo, queria saber mais a respeito dessa religião.[20]
Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talento e especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida social admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e cada pátria é estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem às leis; amam a todos e são perseguidos por todos (…). Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, e aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio.[21]
O crescimento dos cristianismo pode ser explicado humanamente pelo fato de que eles criam no que pregavam e procuravam viver de forma autêntica a sua fé. Acreditavam na veracidade histórica de sua mensagem. Criam no poder de Deus que os transformou.
Tertuliano evidencia a expansão do cristianismo
Por volta do ano 197 AD., Tertuliano (145-220) ao escrever aos romanos, defende os cristãos e mostra a sua integridade. Revela então a sua expansão:
Nós somos de ontem, e já enchemos a terra de tudo o que lhes pertence – as cidades, as ilhas, as fortificações, os municípios, as povoações, os próprios acampamentos, as tribos, as empresas, o palácio, o senado, o fórum –. Deixamos para vocês apenas os templos e seus deuses.[22]
Isso tudo em meio à forte perseguição, como escreveria à frente: “Mas não servem para nada vossas crueldades mais refinadas. Elas são, antes, um atrativo para nossa seita. Nós nos tornamos mais numerosos, cada vez que vós nos ceifais: O sangue dos cristãos é semente”.[23]
Antes de 313, quando o Imperador Constantino (c. 274-337) promulgou a liberdade de culto pelo Édito de Milão (313), no qual declarava o fim das perseguições aos cristãos e a restituição de suas propriedades,[24] o Cristianismo como religião “subversiva”, realizava as suas reuniões secretamente. Agora, os cristãos dispõem de templos[25] e podem adorar publicamente.
Eusébio de Cesaréia, no início do quarto século, descreve o trabalho dos Evangelistas:
Efetivamente, muitos dos discípulos de então, feridos em suas almas pela palavra divina (…) logo empreendiam viagem e realizavam obra de evangelistas, empenhados em pregar a todos os que não haviam ouvido a palavra da fé e em transmitir por escrito os evangelhos divinos.[26]
Os crentes comuns tornaram-se grandes missionários por meio de seu testemunho.
Harnack (1851-1930) escreve:
Os missionários mais numerosos e bem-sucedidos da religião cristã não foram os mestres, mas os cristãos comuns, por causa de sua lealdade e coragem (…). Era característica dessa religião que todos que confessassem a fé se dedicassem ao serviço de sua propagação (…). Não podemos hesitar em crer que a grande missão do cristianismo foi, na realidade, realizada por meio dos missionários informais.[27]
Mesmo com uma história de discriminação, perseguição e martírio, o Cristianismo cresceu. Em 330, Constantino inaugurou a cidade de Constantinopla transferindo a capital de Roma para a nova cidade.
Numa carta a Eusébio, bispo de Cesaréia, Constantino pede com urgência a preparação de 50 Bíblias para a nova capital. Termina por revelar algo a respeito do crescimento do número de cristãos e de igrejas:
Com a ajuda da providência de Deus, nosso Salvador, são muitíssimos os que se hão incorporado à santíssima Igreja na cidade que leva o meu nome. Parece, pois, mui conveniente que, respondendo ao rápido progresso da cidade sob todos os aspectos, se aumente também o número de Igrejas.[28]
O Cristianismo tornara-se popular, sendo seus cultos muito concorridos.[29]
No entanto, nem tudo era tranquilo. Se por um lado as perseguições cessaram, por outro, vemos que, no quarto e quinto séculos, tornam-se evidentes a influência das religiões de mistério no culto. O antigo respeito para com os mártires transformou-se em culto, surgindo a partir daí um “cristianismo popular de segunda classe”.
Aos poucos os novos convertidos tendiam a transferir a Deus, aos apóstolos e mártires, parte da reverência dos antigos cultos prestados a poderes miraculosos que atribuíam aos seus antigos deuses pagãos. Partindo dessa prática foi apenas um passo para que os apóstolos, os anjos e Maria passassem a ser adorados. O culto cristão pouco a pouco se paganizara. A Igreja se aculturou.
Somente na Reforma Protestante do século XVI vamos encontrar um movimento bem-sucedido em trazer de volta a Igreja à prática da Palavra.
Recontextualização do Evangelho
É necessário que entendamos que o nosso testemunho será sempre uma recontextualização da mensagem. Isso porque a nossa apreensão do Evangelho já foi contextualizada; não nos chegou puro. É preciso que não tenhamos a pretensão de uma autossuficiência no que se refere ao monopólio de um evangelho puro que vamos agora, de forma concessiva contextualizar aos nossos ouvintes.
Na realidade, nós já o recebemos dentro de um contexto ativo onde nos apropriamos, de certa forma, de determinadas categorias que se tornam especiais para nós pelo fato de sua importância e, também, de nossa especificidade. Portanto, toda contextualização é uma recontextualização.
Newbigin (1909-1998) parece-me correto nesse ponto, ao afirmar:
Toda comunicação do evangelho já está culturalmente condicionada. (…) Toda interpretação do evangelho está encorporada a alguma forma cultural. O missionário não vai com o evangelho puro e depois o adapta à cultura a qual serve: ele vai com um evangelho que já está incorporado à cultura pela qual foi formado. E isso é assim desde o início.[30]
A cultura é a expressão, a forma de ser de uma dada sociedade que envolve seus costumes, tradições, pautas e agendas. Assim, deve ser dito, que o problema primário não é a cultura, mas, o pecado. A cultura apenas leva consigo as “marcas” do pecado e da condição desintegrada do homem distante de Deus. A cultura não pode estar acima do homem que a constrói e solidifica. Como cristãos, o nosso desafio é levar Deus à cultura e trazer a cultura a Deus.
Contudo, devemos considerar com seriedade as observações de Lewis (1898-1963):
Qual é a vantagem de dizer aos navios o rumo que devem tomar para evitar as colisões se, na verdade, eles não passam de banheiras velhas e enferrujadas, sem condições de navegabilidade? Qual é a vantagem de anotar no papel as regras do comportamento social se sabemos que, na verdade, nossa ambição, nossa covardia, nosso mau humor e nosso orgulho nos impedirão de mantê-las? Não quero dizer com isso, nem por um instante, que não devamos pensar, e pensar bem, sobre aprimoramentos em nosso sistema social e econômico. O que quero dizer, isso sim, é que todo esse pensamento não passará de ilusão se não nos dermos conta de que só a coragem e a generosidade dos indivíduos farão com que qualquer sistema funcione da forma adequada. É muito fácil eliminar os tipos particulares de corrupção ou opressão que prevalecem no atual sistema, mas enquanto os homens forem trapaceiros e opressores, eles encontrarão alguma nova maneira de dar continuidade ao velho jogo debaixo do novo sistema. Não é possível tornar os homens bons por lei, mas sem homens bons nunca se obterá uma boa sociedade….[31]
Por isso, toda recontextualização só fará sentido se confrontarmos os assuntos hodiernos de forma bíblica.[32]
Como o evangelho não é produzido, nem é domínio de nenhuma cultura,[33] cremos que a Palavra de Deus apresenta mandamentos que são supraculturais.[34] Eles devem ser observados em qualquer época ou cultura, constituindo-se em imperativos categóricos para todo o cristão em toda e quaisquer circunstâncias.[35]
A compreensão de que a mensagem do Evangelho é sempre mediada por um contexto cultural específico nos obriga a sermos diligentes na forma como a transmitimos
Devemos reconhecer que a cultura é o contexto no qual vivemos e comunicamos o Evangelho, mas não podemos permitir que ela domine a mensagem bíblica.
Portanto, devemos ser críticos e discernir os aspectos culturais que estão em conformidade com os princípios bíblicos e aqueles que não estão.
A tarefa de comunicar o Evangelho em um contexto cultural específico requer humildade e reflexão. Precisamos entender as nuances e os valores da cultura sem comprometer a verdade bíblica. Assim, a nossa missão é apresentar o Evangelho de forma que seja compreensível e relevante, mas sem diluí-lo ou distorcê-lo, adulterando a sua essência.
Devemos, assim, buscar um equilíbrio entre a fidelidade à mensagem original e a adaptação cultural. Embora a cultura nos forneça as categorias e os símbolos com os quais articulamos nossa fé, não devemos permitir que ela se torne a medida da verdade bíblica.
Este é um desafio constante que exige uma abordagem teológica sólida e uma compreensão profunda tanto das Escrituras quanto do contexto cultural em que atuamos.
Portanto, é fundamental reconhecer que a mensagem do Evangelho transcende qualquer barreira cultural ou temporal. Ela não é moldada ou limitada por contextos específicos, mas, ao contrário, carrega uma verdade universal aplicável a todos os povos e épocas.
Continuarei o assunto no próximo post.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] Herman Bavinck, A Filosofia da Revelação, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 275.
[2] Barclay destaca esta característica do Senhor denominando-a de “absoluta honradez” (William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, v. 1, (Mt 5.10-12), p. 120).
[3]Veja-se: David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 222.
[4]O substantivo “perseguição” (Diwgmo/j = “caça”, “pôr em fuga”) dá a entender a figura simbólica de um animal caçado, de uma presa perseguida, de um tormento incansável e sem misericórdia. Esta palavra denota mais especificamente as perseguições promovidas pelos inimigos do Evangelho; ela se refere sempre à perseguição por motivos religiosos (Ver: Mc 4.17; At 8.1; 13.50; Rm 8.35; 2Tm 3.11). O verbo Diw/kw é utilizado sistematicamente para aqueles que perseguiam a Jesus, os discípulos e a Igreja (Mt 5.10-12; Lc 21.12; Jo 5.16; 15.20). Lucas emprega este mesmo verbo para descrever a perseguição que Paulo efetuou contra a Igreja (At 22.4; 26.11; 1Co 15.9; Gl 1.13,23; Fp 3.6), sendo também a palavra empregada por Jesus Cristo quando pergunta a Saulo do porquê de sua perseguição (At 9.4-5/At 22.7-8/At 26.14-15). Paulo diz que antes perseguia a igreja (Fp 3.6) mas, agora, prosseguia para o alvo (Fp 3.12,14). O escritor de Hebreus diz que devemos perseguir a paz e a santificação (Hb 12.14). Pedro ensina o mesmo a respeito da paz (1Pe 3.11).
[5] O sentido da palavra é de repreender, insultar, censurar. A palavra não indica uma atitude má em si, a questão está em seu motivo.
[6] O sentido da palavra é o de enganar com mentiras.
[7] Os cristãos primitivos, por exemplo, foram acusados de canibalismo devido às palavras da Ceia (“comei e bebei”); orgias (Devido à “festa do amor”, “agápe”, quando os cristãos se saudavam com ósculo santo); incendiários (devido à pregação escatológica); dissolução familiar (divisão na família quando nem todos se convertiam ao cristianismo) e rebeldia (não participavam do culto ao imperador, instrumento político de manutenção da unidade do império). (Veja-se: William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, v. 1, (Mt 5.10-12), p. 123-125). Todas estas acusações foram fermentando, criando, gradativamente uma atmosfera de indisposição, de senso comum avesso aos cristãos. (Veja-se: Jaroslav Pelikan, A Tradição Cristã: uma história do desenvolvimento da doutrina: o surgimento da tradição católica 100-600, volume 1, São Paulo: Shedd Publicações, 2014, p. 48ss.).
[8] O verbo está no imperfeito, xai/rete, indicando uma ação incompleta visto que ainda está em processo de realização com vistas ao seu objetivo final. Neste caso, a alegria recomendada deve ser contínua.
[9] A palavra galardão que tem também o significado de recompensa (Mt 5.46; 6.2,5,16; Jo 4.36); salário (Mt 20.8; Lc 10.7; Rm 4.4; 1Tm 5.18; Tg 5.4); preço (At 1.18); prêmio (2Pe 3.15) e, até mesmo, ganância (Jd 11), enfatiza não as nossas obras, antes, a misericórdia de Deus que se lhe antecipa. Nesta bem-aventurança somos confrontados com os valores celestiais os quais devem iluminar e dirigir nossos valores: “porque deles é o reino dos céus” (Mt 5.10). Daí a instrução de Paulo aos colossenses: “Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus. 2 Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra; 3 porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus. 4 Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, em glória” (Cl 3.1-4).
[10] Do mesmo modo, Paulo escrevera aos tessalonicenses quando enfrentavam perseguição: “Regozijai-vos (xai/rete) sempre” (1Ts 5.16/Fp 3.1; 4.4).
[11] Dietrich Bonhoeffer, Discipulado, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1984, p. 63.
[12] Veja-se: Jaroslav Pelikan, A Tradição Cristã: uma história do desenvolvimento da doutrina: o surgimento da tradição católica 100-600, volume 1, São Paulo: Shedd Publicações, 2014, p. 33-85.
[13] Cf. Justino de Roma, I Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, 67.7. Essa prática tornou-se comum no Novo Testamento, perpetuou-se na Igreja Cristã e, já no segundo século encontramos farto material atestando o culto dominical. (Vejam-se: Didaquê, XIV.1; The Epistle of Barnabas, XV. In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds., Ante-Nicene Fathers, 2. ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 1, p. 147. Cartas de Santo Inácio de Antioquia, Petrópolis, RJ.: Vozes, ã 1970, Carta aos Magnésios, 9, p. 53).
[14]Esta expressão de Justino refere-se aos Evangelhos, conforme ele mesmo diz: “Foi isso o que os Apóstolos nas Memórias por eles escritas, que se chamam Evangelhos….” (Justino de Roma, I Apologia, 66.3).
[15] A distribuição dos elementos da Ceia não era feita indistintamente, mas somente aos crentes, conforme ele mesmo explica: “Este alimento se chama entre nós Eucaristia, da qual ninguém pode participar, a não ser que creia serem verdadeiros nossos ensinamentos e se lavou no banho que traz a remissão dos pecados e a regeneração e vive conforme o que Cristo ensinou” (Justino de Roma, I Apologia, 66.1). Critério semelhante, temos no Didaquê, IX.5: “Mas ninguém coma nem beba de vossa Ação de Graças, a não ser os que foram batizados no nome do Senhor. Pois que, a respeito disto, também disse o Senhor: ‘Não deis aos cães o que é santo’.”.
[16] Calvino, mesmo sem aludir a esta passagem, demonstra ter restrições a essa prática. (Veja-se: J. Calvino, As Institutas, IV.17.39).
[17] Justino de Roma, I Apologia, 67.
[18] Veja-se: Peter Brown, Antiguidade Tardia: In: Philippe Ariès; Georges Duby, História da Vida Privada 1. Do Império Romano ao Ano Mil, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, [p. 225-241], p. 239-241.
[19] Veja-se: Herman Bavinck, A Filosofia da Revelação, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 255-256.
[20] Veja-se: Carta a Diogneto, I: In: Padres Apologistas, São Paulo: Paulus, 1995, p. 19.
[21] Carta a Diogneto, V.1-11,17: In: Padres Apologistas, p. 22-23.
[22]Tertulian, Apology, 37: In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, 2. ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 3, p. 45.
[23]Tertulian, Apology, 50: In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, 2. ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, v. 3, p. 55.
[24]Veja-se: Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, Madrid: La Editorial Catolica, S.A. (Biblioteca de Autores Cristianos, v. 349 e 350), X.5.2-14. Sobre outras disposições de Constantino em favor dos cristãos, Vd. Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, X.5.15-17.
[25] É digno de nota que, o imperador Alexandre Severo (reinou durante o período de 222-235), foi o primeiro a construir um “templo cristão” (Cf. H.H. Halley, Manual Bíblico, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1971, p. 672). Todavia, ele “tinha em sua capela estátuas de Orfeu, Alexandre o Grande, de vários imperadores romanos e de Jesus. (sic!)” (K.S. Latourette, Historia del Cristianismo, 4. ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1978, v. 1, p. 126).
[26]Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, Madrid: La Editorial Catolica, S.A. (Biblioteca de Autores Cristianos, v. 349 e 350), III.37.2.
[27]Adolf von Harnack, The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries, New York: Harper & Brothers, 1962, p. 366-368.
[28]Eusebio, The Life of Constantine, IV.36: In: Philip Schaff; Henry Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of Christian Church, (Second Series), Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (reprinted), 1978, v. 1, p. 549.
[29] Sobre o intenso crescimento no Cristianismo nos primeiros séculos, vejam-se algumas projeções amparadas em boa documentação, em Rodney Stark, O crescimento do cristianismo: um sociólogo reconsidera a história, São Paulo: Paulinas, 2006.
[30] Lesslie Newbigin, O Evangelho em uma sociedade pluralista, Viçosa, MG.: Ultimato, 2016, p. 187, 189-190.
[31] C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples, (Edição Especial). Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017, p. 72-73 (E-book).
[32] Veja-se: Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 312.
[33]Cf. Paul G. Hiebert, O Evangelho e a Diversidade de Culturas: um guia de antropologia missionária, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 29-30.
[34] “…. Mesmo em face da diversidade cultural, os cristãos devem expressar a autoridade transcultural da Bíblia, porque eles são os únicos no planeta com uma mensagem que é destinada a pessoas de todas as culturas. Além disso, nós temos a única mensagem que não precisa ser transformada e redefinida em cada circunstância cultural, porque estamos falando sobre condições permanentes como o pecado, o caráter de Deus e a cruz do Senhor Jesus Cristo” (R. Albert Mohler Jr., Pregar com a cultura em mente: In: Mark Dever, ed. A Pregação da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 65).
[35]“A moralidade foi retirada do reino da verdade. A ética não tem nada a ver com a comunidade humana maior, com a solidariedade de todos os seres humanos, nem com uma lei moral que transcende as pessoas e as culturas porque é fundamentada no caráter de Deus” (Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 107).
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