Simonton, a “Imprensa Evangélica” e seus nobres ideais – Parte 2

1864 – Um ano de grandes contrastes

Olhando o mundo, 1864 não foi um ano sensacional. – A.G. Simonton.[1]

O ano de 1864 inicia-se cheio de expectativa: “Estou outra vez no meu posto, casado, e se a esperança não mentir, em breve saberei o que é ser pai. Tenho muitas razões para ser grato a Deus, pois é constante comigo. Sou tão feliz como poderia esperar ser neste mundo”.[2]

Em 19 de março recorda o seu primeiro ano de casamento: “Hoje é o primeiro aniversário de nosso casamento, um ida de amáveis recordações e sentimentos de gratidão. Foi um ano de bênção e quase nenhum aborrecimento; exige filial gratidão a Deus e confissões penitentes de não-merecimento e pequena fé”.[3]

Em 1864 doze novos crentes por profissão de fé (só dois falavam inglês).[4] Entre eles estava o ex-padre, José Manoel da Conceição (23/10/1864) – professou a fé e foi batizado –, que se tornaria o grande reformador protestante brasileiro.[5] Seis crianças foram batizadas (05/07/1864), realizando a cerimônia o Rev. Blackford (1829-1890).[6]

No  ano  de  1864, após receber quatro novos crentes, Simonton escreveu  à Missão: “Não costumamos apressar profissões de fé para  engrossar o rol da igreja. Com cuidado aconselhamos os candidatos  que  examinem bem a própria consciência, e nós mesmos longamente os interrogamos”.[7]

A igreja crescia. O fato  é  que  a igreja que celebrava a Ceia em cada dois meses,  não havia até 1865, ministrado este Sacramento sem a recepção  de  novos  membros;[8]  e,  os novos convertidos eram em sua maioria  brasileiros ou portugueses aqui naturalizados; surgia de fato  uma  igreja nativa; uma Igreja de Deus que estava no Rio de Janeiro.

Nesse  período,  a  Igreja  mantinha três cultos aos domingos, bem  como  a Escola Dominical e, também havia um culto na quinta-feira  à noite. Um dos cultos dominicais era realizado às 11 horas  da  manhã em inglês; até que, no dia 4/12/1864, Simonton comunicou  que  não mais realizaria o culto em inglês, aconselhando aos fiéis  – que ficaram tristes e surpresos com a notícia –, a frequentarem a Capela Anglicana.[9]

A interrupção destes cultos  para ingleses e americanos deu-se devido à intensidade de trabalhos  que  Simonton  tinha  que realizar além de outro projeto que falaremos um pouco mais à frente.

A sua vida pessoal, porém, apresenta alguns reveses. Depois de um parto extremamente difícil, nasce sua filhinha  em 19/061864. Simonton está tão traumatizado com o sofrimento da esposa que o sentimento de esposo é mais vivo do que o de pai: “A lembrança dos sofrimentos de Helen está ainda muito viva para permitir que pense na criança”.[10]

A dor de Simonton era como um pressentimento: Helen não resiste, vindo a falecer dias depois (28/06/1864). Simonton amargurado diante do caixão de sua esposa, registra: “Deus tenha  piedade  de  mim agora, pois águas profundas rolaram sobre mim.  Helen  está  estendida em seu caixão na salinha de entrada.  Deus a levou tão de repente que ando como quem sonha”.[11]

Simonton está triste, ao que parece amigos procuram consolá-lo; no entanto ele se alimenta da saudade de sua esposa e de seu testemunho de fé nos últimos momentos de sua existência terrena.[12]

Os dias se passam e se Helen é uma meiga lembrança, a sua pequenina filha é uma doce realidade. Simonton que pensava em dar-lhe o nome de Mary Cole, muda de ideia: “Só o que tenho de Helen Murdoch é a criança”.[13] No dia 5 de julho a menina foi batizada na Igreja do Rio pelo seu tio, Rev. Blackford; o nome da criança:  Helen Murdoch. Simonton.[14]

O seu alimento é a fé que ultrapassa o tempo: “O céu é o lar dos que creem; é o meu lar. Todos os que me são caros estão lá; meu pai, minha mãe, minha e irmã e minha esposa. Jesus está lá”.[15]

Simonton reinicia os seus trabalhos mas, tive uma dificuldade: como cuidar da pequena Helen. Solicita então que venha alguém ajudá-lo nisso. Aguarda ansiosamente a resposta.[16]

Ao que parece, se obteve resposta não foi positiva. Em 21 de novembro de 1864 embarca Helen para Santos, no “Santa Maria”,  indo morar com seus tios em São Paulo, Blackford e Elizabeth  Wiggins  Simonton  (1822-1879), Lillie, como carinhosamente chamava sua irmã.[17]

Vinte dias depois, reflexivo, na solidão, escreve:

Na minha vida interior as mudanças operadas por esse ano são indescritíveis. Um ano atrás tinha casa em Silva Manuel e nenhum desejo terreno insatisfeito. No meu trabalho e no companheirismo de minha querida Helen tinha tudo que jamais sonhara de contentamento profundo e calmo. Conversamos sobre os nossos, os amigos na pátria, e dizíamo-nos que não trocaríamos de lugar com nenhum deles.

Agora tudo mudou. Deus misteriosamente tomou meu esteio forte. Eu ainda me pergunto porque, sem conseguir responder. Oro pedindo sua graça.[18]

Três meses depois da partida de Helen (1864-1952), Simonton consegue em companhia de seu irmão, James Snodgrass Simonton (1829-?), ir à São Paulo. Ele registra:

Chegamos tarde da noite, em 22 de fevereiro. Em um minuto a casa toda estava acordada e o bebê nos meus braços. Somente um olhar foi o suficiente para assegurar-me que estava bem fisicamente e crescendo normalmente. O rosto redondo, o corpo rechonchudo, e seus membros mostram-me que tem saúde e que nada lhe falta. Sua timidez logo se foi com meus agrados e depressa ela estava tão afeiçoada que vinha comigo mesmo dos braços da babá ou de minha irmã.[19]

 

Surge um jornal

No dia 5 de novembro de 1864 − sob a dor recente de perder sua esposa e expectativa iminente de se separar de sua filhinha −, após solene oração de súplica e consagração,[20] na iminência de se separar de sua filhinha, Simonton e seus companheiros publicam o primeiro número do jornal Imprensa Evangélica,  o primeiro jornal evangélico do Brasil e talvez da América Latina.[21]

O objetivo primário  era de publicá-lo semanalmente. Todavia, como registrou Simonton:

A Imprensa Evangélica tem-me dado muita ansiedade. Foi começada com o Padre, eu e o Sr. Blackford na redação, deixando para Neves e Quintano (sic.) a gerência. Foi programada para sair uma vez por semana. Poucos dias foram suficientes para mostrar a insensatez de tal plano e a certeza de ficarmos envolvidos em grandes perdas se não assumíssemos a gerência. Pressionado com problemas em casa, com a necessidade de recursos para o bebê e com a preocupação da Imprensa, sentia-me exausto e acabado. Dois números já saíram. Recobrei a saúde e o equilíbrio de espírito e estou mais confiante e esperançoso. O Senhor provará e dirigirá, é agora minha canção e minha certeza.[22]

Devido a essa mudança de  planos,  no  primeiro  número onde dizia “Publica-se todos os sábados”,  teve  a expressão “todos os sábados” riscada. No  artigo  explicativo  a respeito da origem e propósito do jornal,  onde  estava  escrito,  “Sahirá semanalmente um número de 8 páginas”, teve a palavra “semanalmente” o mesmo fim.

No editorial do segundo número, Simonton explica:

A IMPRENSA EVANGÉLICA continuará a ter oito páginas de impressão, e, para não diminuir na matéria, julgamos melhor distribui-la, nesse formato, duas vezes por mês, ficando assim definitivamente regularizada a sua publicação.

Circunstâncias imprevistas nos obrigaram a esta alteração, para a qual contamos com o benevolente assentimento dos nossos assinantes.[23]

Reações ao periódico

Logo após a edição do primeiro número da Imprensa, houve uma reação católica, por intermédio do jornal ultramontano do Rio de Janeiro, o Cruzeiro do Brasil,[24] que noticiando o aparecimento de um periódico protestante na Corte, pedia ao vigário capitular do Rio de Janeiro, que após investigação do fato, tomasse as medidas necessárias como chefe do Bispado.[25] Com a negativa do governo em impedir a publicação da Imprensa,  o Cruzeiro continuou de forma severa o seu combate.[26]

Todavia, houve também  manifestação  de  simpatia por parte de pelo menos três jornais  seculares, a saber: O Constitucional,[27] O Jornal  do Commercio[28] e O Diário do Rio de Janeiro.[29] No seu segundo número, a Imprensa Evangélica transcreve e comenta parte dos dizeres desses jornais.[30]

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1] A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 11.01.1865.

[2] A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 01/01/1864.

[3] A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 19/03/1864; 11/01/1865.

[4] Relatório  de Simonton apresentado ao Presbitério do Rio de Janeiro no dia 10/07/1866, p. 5-6. (fonte manuscrita).

[5]A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 26/10/1864; Livro de Atas da Igreja do Rio de Janeiro,  p. 164. (fonte manuscrita)

[6] A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 05/07/1864; Livro de Atas da Igreja do Rio de Janeiro,  p. 130. (fonte manuscrita)

[7]Apud Boanerges  Ribeiro,  Protestantismo e Cultura Brasileira, p. 56.

[8]Vejam-se: Livro de Atas da Igreja do Rio de Janeiro, in loc.; A. G. Simonton, Diário 1852-1867,  14/01/62;  12/09/63;  06/10/63;  06/10/64; A.G.  Simonton,  The Foreing Missionary, XXII, 8/1/1864, p.  204. Apud  Ribeiro, Boanerges  Ribeiro,  Protestantismo e Cultura Brasileira, p. 60.

[9] A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 13.12.1864.

[10] A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 19/06/1864.

[11]A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 28/06/1864.

[12]A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 01/07/1864.

[13]A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 05/07/1864.

[14] A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 05/07/1864; Livro de Atas da Igreja do Rio de Janeiro, p. 130.

[15]A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 05/07/1864.

[16]A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 06/10/1864.

[17] A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 26/11/1864.  Depois de viajar pelo interior de São Paulo tendo um encontro com Schneider (Rev.  F.J.C.  Schneider [1832-1910]) a fim de avaliar e de sua utilidade naquele campo, regressou São Paulo; registra então o seu encontro com a pequena Helen: “Cheguei à casa na noite de 25 de abril. Encontrei o bebê com dois dentinhos novos e quase andando. Tenho grandes razões para ser grato à bondade de Deus comigo no que diz respeito a minha filha” (A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 02/05/1865).

[18] A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 11.01.1865.

[19] A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 02/05/1865. Depois de viajar pelo interior de São Paulo tendo um encontro com Schneider a fim de avaliar e de sua utilidade naquele campo, regressou São Paulo; registra então o seu encontro com a pequena Helen: “Cheguei à casa na noite de 25 de abril. Encontrei o bebê com dois dentinhos novos e quase andando. Tenho grandes razões para ser grato à bondade de Deus comigo no que diz respeito a minha filha.”

[20]“Ontem de manhã, Santos Neves [Antônio José de Santos Neves] e Quintana (Domingos Manoel de Oliveira Quintana [n. c. 1796])** vieram até nossa casa receber os originais do primeiro número da Imprensa Evangélica, o jornal semanal que resolvemos publicar. Sinto mais a responsabilidade deste passo que de qualquer outra coisa que antes intentei. Primeiro nos ajoelhamos em oração e entregamos essa iniciativa e nós mesmos à direção divina. O caminho parece estar preparado e só nos resta avançar com ousadia” (A. G. Simonton, Diário 1852-1867, 26/10/1864).

**Oliveira Quintana professaria a sua fé e seria batizado no domingo seguinte à publicação da Imprensa, 06.11.1864, na Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro. No futuro, por breve período, ele dirigiria a Imprensa Evangélica.

[21] A minha suspeita é afirmada pelo eminente historiador Boanerges Ribeiro (1919-2023) (Boanerges Ribeiro, José Manoel da Conceição e a Reforma Evangélica, São Paulo: Livraria O Semeador, 1995, p. 45).

[22]Ashbel Green Simonton, Diário, 1852-1868, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana; Livraria O Semeador, 1982,  26/11/1864. Este ano foi marcado por sérios e intensos contraste na vida de Simonton.

[23] Imprensa Evangélica, 19/11/1864, p. 1.

[24] Cruzeiro do Brasil: Órgão do Instituto Católico. Este jornal era publicado semanalmente aos domingos. Seu primeiro número foi apareceu pouco antes da Imprensa, em 02 de outubro de 1864. Teve duração efêmera. Seria extinto por falta de recursos em 22/10/1865. Veja a nota de despedida (Cruzeiro do Brasil, Rio de Janeiro, 22.10.1865, p. 1).  A  Imprensa Evangélica noticiou o fato (Imprensa Evangélica,  04/11/1865, p. 3).

[25] “Imprensa periódica. — Dá o Correio Mercantil de ontem a seguinte noticia:  ‘Publicou-se o primeiro número da Imprensa Evangélica. Dedica-se o nosso campeão a explicar e denominar os preceitos do Evangelho, que considera única fonte, quer da moral, quer da religião.’ Não sabemos que folha é esta, por não a termos ainda lido, mas, pelo que diz o Mercantil, parece ser um novo órgão do protestantismo. É boa lição dada àqueles que ainda acreditam ser o protestantismo no Brasil um sonho de imaginação escaldada. Ao Sr. vigário capitular compete sindicar do fato, e como chefe do bispado dar providências. Pela nossa parte faremos como até então, o nosso dever, profligando toda e qualquer doutrina condenada e reprovada pela Igreja Católica Apostólica Romana, única verdadeira”. (Cruzeiro do Brasil, Rio de Janeiro, 06.11.1864, p. 4).

[26]Cruzeiro do Brasil, Rio de Janeiro, 13.11.1864, p. 1. Vejam-se os pertinentes comentários de Vieira (David G. Vieira, O Protestantismo, A Maçonaria e A Questão Religiosa no Brasil, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 148-149).

[27] O Constitucional: Jornal Político, Religioso, Científico e Literário. Trazia abaixo os dizeres: “Princípios: Religião, Monarquia, Democracia”. Era publicado diariamente em Recife a partir de 25.03.1861. Foi criado pelo padre, jornalista, educador e político pernambucano, Miguel do Sacramento Lopes Gama (1791-1852). Gama é muito bem-humorado e um crítico social bastante perspicaz. Isso fica patente no jornal que fundou e foi um único editor, O Carapuceiro, que circulou em Recife de forma assistemática no período de 07.04.1832 a 28.09.1847. O jornal trazia em seu frontispício, a inscrição: “Periódico semper moral e só per accidens político”.

[28] Jornal do Commercio, fundado em 1827 no Rio de Janeiro, permanecendo até 2016.(Cf. https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-04-28/jornal-do-commercio-fecha-as-portas.html) (Consulta feita em 19.08.2024).

[29]        O primeiro jornal genuinamente  informativo publicado no Brasil, foi o Diário do Rio de Janeiro (1821-1878) que trazia notícias  de  crimes,  demandas,  loterias, movimento de navios, questões meteorológicas, entre outras, sem contudo  se  envolver  em questões políticas, não noticiando inclusive, a proclamação da Independência. Foi também o primeiro jornal diário a ser publicado.

[30] Imprensa Evangélica,19/11/1864, p. 1.

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