Pensar, Meditar e Orar: vocações sem despedidas

O cristianismo autêntico é perigoso… é precisamente aqui que se encontra a tarefa especificamente moderna da teologia, conforme tentei integrá-la no trabalho da minha vida: apresentar o que o cristianismo realmente é, de forma nova em todas as dimensões, com todas as suas consequências e todos os seus perigos. E, pelo menos pela minha experiência, posso dizer que na medida em que a teologia faz isso, ela sempre encontra uma audiência e é respeitada. Em contraste, a teologia como construção de pontes, como mediação, evasão, encobrimento – isso desaparece hoje mais do que nunca. Assim, onde quer que se encontre aquele abismo entre a teologia e a realidade… a própria teologia é a culpada. E não porque esteja essencialmente “fora de contato com o mundo”, mas porque não entendeu sua própria tarefa… a teologia só pode fazer bem ao mundo se não se secularizar. – Karl Barth (1886-1968).[1]

O Cristianismo não trata de uma relação tangente com a experiência religiosa. Ele envolve um encontro com um Deus santo, o qual constitui o centro, ou o núcleo, da existência humana. A fé cristã é teocêntrica. Deus não está à margem da vida dos cristãos, mas no centro. Ele define toda nossa vida e nossa visão do mundo. – R.C. Sproul (1939-2017).[2]

Introdução

“Piedade deve ser unida à ciência”. Esse, de certa forma, tornou-se uma espécie de lema do teólogo Reformado holandês Gisbertus Voetius (1589-1676).[3]

Um dos sérios problemas para o cristão, é deixar de pensar criticamente; abandonar, não impunemente, esse apanágio de nossa existência que nos privilegia e responsabiliza.

A nossa conversão a Deus envolve também uma nova mente, uma nova maneira de perceber a realidade, vendo o real como de fato é ainda que não exaustivamente. Nosso coração e mente precisam ser convertidos ao Senhor.[4]

Usando uma figura do teólogo luterano de Johann C. Blumhardt (1805-1880), citada por Bavinck (1854-1921), podemos dizer que o cristão precisa passar basicamente por duas conversões: converter-se da vida natural para a vida espiritual e depois, da vida espiritual para a vida natural. Isso pode ser ilustrado no salmo: “Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem eu me compraza na terra” (Sl 73.25).[5]

 

1. Amando e servindo ao Senhor com integridade

É necessário que usemos a nossa mente em submissão a Deus. Devemos aprender a entender a vontade de Deus em todas as circunstâncias e submetermo-nos a ela. A nossa mente deve ser tão devotada a Deus como o nosso coração; excluí-la, significa não amar a Deus como Ele requer. Deus deseja que O amemos e O sirvamos também com nossa inteligência: “Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração (kardi/a), de toda a tua alma (yuxh//) e de todo o teu entendimento (dia/noia).  Este é o grande e primeiro mandamento” (Mt 22.37-38).

Portanto, o nosso testemunho exige o uso abalizado de nossa inteligência. A rejeição de um racionalismo autônomo, egorreferente, cuja única referência seria o eu pensante, não significa o abandono da racionalidade  na compreensão e transmissão da mensagem do Evangelho.

 

2. A urgente necessidade de usar nossa mente

Indicando a responsabilidade que temos de consagrar as nossas mentes ao serviço de Deus, em 1980, Charles Habib Malik (1906-1987), filósofo e diplomata cristão de origem libanesa, declarou na inauguração do Billy Graham Center  no campus do Wheaton College:

Devo ser franco com vocês: o maior perigo que o cristianismo evangélico americano enfrenta é o anti-intelectualismo. A mente, compreendida em suas maiores e mais profundas faculdades, não tem recebido suficiente atenção. No entanto, a educação intelectual não ocorre sem uma profunda imersão por alguns anos na história do pensamento e do espírito. Aqueles que estão com pressa de saírem da faculdade e começarem a ganhar dinheiro ou a servir na igreja ou a pregar o evangelho não têm ideia do valor infinito de se gastar anos conversando com as maiores mentes e almas do passado, desenvolvendo, afiando e ampliando seu poder de pensamento. O resultado é que a arena do pensamento criativo é abandonada e entregue ao inimigo. Quem, entre os acadêmicos evangélicos, pode enfrentar os grandes pensadores seculares em seus próprios termos acadêmicos? Quem, entre os acadêmicos evangélicos, é citado pelas maiores autoridades seculares como fonte normativa em história, filosofia, psicologia, sociologia ou política? O modo evangélico de pensar teria a menor chance de se tornar dominante nas grandes universidades da Europa e América que moldam toda nossa civilização com seu espírito e suas ideias? Por uma maior eficácia no testemunho de Jesus Cristo, assim como pela sua própria causa, os evangélicos não podem se dar ao luxo de viver na periferia da existência intelectual responsável.[6]

 

3. Um pensar submisso e as suas lutas

Na Segunda Epístola destinada a Timóteo, Paulo se despede. Apresenta instruções finais e palavras de encorajamento ao seu discípulo mais próximo. Escreve então: Pondera (noe/w) (= atentar, compreender, pensar, entender) o que acabo de dizer, porque o Senhor (ku/rioj) te dará compreensão (su/nesij) (= entendimento, inteligência, discernimento)  em todas as coisas” (2Tm 2.7).

Pensar, pensar sobre o pensar é algo salutar e muito desafiante e abençoador. Somos destinados ao pensar. Devemos nos valer deste privilégio próprio do ser humano, concedido pelo Criador.

Precisamos aprender que a fé não elimina a nossa responsabilidade de pensar. Pensar não exclui a nossa fé. Ambas as atitudes devem caracterizar a vida do cristão a fim de que a nossa fé seja compreensível e a nossa razão seja guiada pela fé.  A nossa fé e a nossa inteligência devem caminhar de mãos dadas em submissão a Deus.

O pensar confuso, destituído de fundamento, leva-nos à confusão. O seu repetir e propagar cria uma estagnação social em todos os níveis. A confusão intelectual é uma das raízes de repetições infindáveis que sufoca a possibilidade de crescimento, ajudando a perpetuar o erro, o equívoco e o que é obsoleto em sua constituição e prática.

Calvino (1509-1564), escreveu com propriedade demonstrando que é o Espírito quem deve guiar nossa razão:

Chamo serviço não somente o que consiste na obediência à Palavra de Deus, mas também aquele pelo qual o entendimento do homem, despojado dos seus próprios sentimentos, converte-se inteiramente e se sujeita ao Espírito de Deus. Essa transformação, que o apóstolo Paulo chama renovação da mente [Rm 12.2], tem sido ignorada por todos os filósofos, apesar de constituir o primeiro ponto de acesso à vida. Eles ensinam que somente a razão deve reger e dirigir o homem, e pensam que só a ela devemos ouvir e seguir; com isso, atribuem unicamente à razão o governo da vida. Por outro lado, a filosofia cristã pretende que a razão ceda e se afaste, para dar lugar ao Espírito Santo, e que por Ele seja subjugada e conduzida, de modo que já não seja o homem que viva, mas que, tendo sofrido com Cristo, nele Cristo viva e reine.[7]

O Senhor nos dá compreensão, nos faz ter entendimento de toda a realidade. O real não é uma mera utopia, antes, é acessível e, portanto, conhecível. Não vivemos num mundo de imagens, mas, de realidade, por mais desagradável que essa possa se configurar a nós em determinadas circunstâncias. No entanto, precisamos refletir a respeito. Não basta ler, é preciso refletir. O que me faz pensar que o caminho para a compreensão das coisas é um pensar intenso, humilde e submisso a Deus. Nem sempre as coisas se mostram a nós de forma clara e evidente. Precisamos pensar a respeito.

O clima intelectual de uma época é sempre fortemente influenciador de nossa estrutura de pensamento e, portanto, de nossas prioridades e valores. A força deste “clima” talvez repouse sobre a sua configuração óbvia e normativa com que ele se apresenta à nossa mente. É quase impossível ter a percepção de algo que nos conduz – como também a nossos parceiros de entendimento –, de forma tão suave. Por isso, o simples – ainda que não seja tão simples assim – fato de podermos pensar com clareza, sem estes condicionantes, é uma bênção inestimável de Deus. “O pecado é anti-intelectual”.[8]

Por vezes pensamos que o pensar com intensidade é uma tarefa exclusiva para profissionais, quem sabe, filósofos. No entanto, o Cristianismo apresenta um desafio constante ao pensamento, à análise e ponderação.[9] O homem é destinado ao pensamento. Na Criação vemos que Deus planeja, executa e avalia a Sua obra (Gn 1.26-31). Ao mesmo tempo, lemos que Deus nos criou à sua imagem e semelhança. Por isso não podemos conceber o ser humano no emprego adequado de seus dons, não se valer naturalmente desta característica divina que lhe foi concedida e, que o caracteriza.[10]

Adler (1902-2001) resume assim a vocação do ser humano ao pensamento, à filosofia:

Não podemos deixar de repetir que a filosofia é assunto para todos. Ser um ser humano é ser dotado com a propensão de filosofar. Em certa medida, todos nos ocupamos de pensamentos filosóficos durante o curso de nossas vidas. Reconhecer isso não é o bastante. Também é necessário compreender por que é assim e qual é o negócio da filosofia. A resposta, em uma palavra, é ideias. Em duas palavras, é grandes ideias – as ideias básicas e indispensáveis para compreendermos a nós mesmos, nossa sociedade e o mundo em que vivemos.[11]

Outro aspecto que quero destacar é que  pelo fato de nosso pensamento fluir com certa facilidade sobre determinados assuntos, termos opiniões formada ou uma linha de pensamento que nos parece coerente e sensata, nem por isso podemos nos acomodar em nossos pensamentos. É preciso que desenvolvamos a arte de pensar sobre o pensar. O pecado também afetou a nossa estrutura de pensamento e consequentemente o ato de pensar e, necessariamente, o processo de reflexão.[12] Muito do que vemos e priorizamos está associado não ao que vemos, mas, à nossa predisposição intelectual para ver como vemos.[13]

 

Agendas excludentes

No Salmo 1, constatamos duas agendas excludentes. Diz o salmista positivamente: “Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores.  2 Antes, o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite” (Sl 1.1-2).

O salmista estabelece o princípio orientador da agenda do ímpio e da agenda do santo. O contraste é feito entre o “conselho dos ímpios”  e a “Lei do Senhor” (1-2). Aqui temos algo fundamental: o que molda o pensamento do homem condiciona a sua vida![14]

Agimos conforme cremos e pensamos.   O que cremos determina a nossa forma de ver e atuar em todas as esferas, inclusive na sociedade.[15] Portanto, a batalha espiritual está na escolha que o homem deverá necessariamente fazer entre o “conselho dos ímpios” e a “Lei do Senhor”.

O Conselho que permanece é o do Senhor. Por isso, é “Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores” (Sl 1.1).

Enquanto os incrédulos seguem o conselho dos ímpios, os fiéis se instruem na Lei do Senhor (hwhy>), sendo utilizado aqui o nome mais elevado de Deus (hwhy>); Aquele que é Autoexistente, Todo-Poderoso e Eterno. Daí a exclamação do salmista: “Bem-aventurado é o povo cujo Deus é o Senhor (wyh'(l{a/ hw”ïhy]v,) (Sl 144.15). O Senhor que é o nosso Pastor é quem nos instrui por meio da sua Palavrai e nos conduz em segurança.

A instrução de Deus tem valor permanente. O problema nosso, por vezes, como o de Israel no deserto, é que com muita facilidade nos esquecemos da Palavra, do Conselho de Deus. Ele é permanente, porém, a nossa fé, tende a ser provisória e ingratamente passageira: Rápida e prontamente nos esquecemos de Deus.

O salmista retrata a trajetória do povo no deserto:

10 Salvou-os das mãos de quem os odiava e os remiu do poder do inimigo.  11 As águas cobriram os seus opressores; nem um deles escapou. 12 Então, creram nas suas palavras e lhe cantaram louvor. 13 Cedo, porém, se esqueceram das suas obras e não lhe aguardaram os desígnios (hc'[e) (etsah); 14 entregaram-se à cobiça, no deserto; e tentaram a Deus na solidão.  15 Concedeu-lhes o que pediram, mas fez definhar-lhes a alma. (Sl 106.10-15).

O povo não confiou a ponto de esperar o cumprimento da promessa de Deus. Analisemos alguns aspectos desta bem-aventurança

Enquanto o ímpio persegue freneticamente o conselho e caminho dos ímpios, o fiel, que tem na Palavra o seu prazer, ocupa a sua mente com a Lei do Senhor; de dia e de noite. A ênfase é no objeto da meditação (A Lei) e a sua constância. A meditação é centrada em Deus e sua Palavra; não é uma mera meditação introspectiva ou transcendental, mas, centrada em Deus e dirigida por Deus.[16]   Portanto, todo momento e cada circunstância é oportuno para tomar a Palavra como alvo de nossas cogitações.

Curiosamente, no Salmo 2.1, o verbo “imaginar” (hg’h’) (hãgãh) é o mesmo de “meditar” no Salmo 1.2. O verbo que é usado de forma negativa e positiva na Escritura, tem o sentido de murmurar, gemer, meditar, planejar, imaginar. É possível que a Palavra fosse “murmurada”, lida a meia voz durante a sua contínua meditação.[17] Esse meditar tinha como objetivo de, por meio da aprendizagem dos mandamentos de Deus,[18] adequar a sua vida aos ensinamentos ali contidos, não apenas um exercício intelectual e sensorial (Js 1.8).

 

No que meditamos?

A questão então, está no que ocupa a nossa mente: em meditar na Palavra ou em imaginar cousas vãs?. Quando a nossa imaginação navega sem rumo pode se alimentar de coisas fúteis, tornando-se instrumento de destruição como, por exemplo, para maquinar planos de vingança, destruição e calúnia.

A nossa imaginação mal utilizada poderá criar estruturas mentais que se constituem em pressupostos concretos para o novo elaborar intelectual, nos conduzindo a um comportamento totalmente distante da realidade, cujo fundamento está em nossa imaginação pecaminosa que se alimentou de si mesma construindo um mundo fictício e, pior, destrutivo.

Esta “petição de princípio” imaginativa certamente acarretará muita dor e ansiedade e, pior, sem nenhum fundamento concreto.

Muitos de nossos pecados são fermentados em nosso coração antes de se transformarem em hábitos e vícios. Uma mente influenciada pelo pecado facilmente elabora planos pecaminosos e, com mais sofisticação, os racionaliza, como que criando o veneno e o que julga ser seu antídoto. Não nos contentamos em pecar; queremos justificá-lo e, se possível, conseguir adeptos à nossa.

O antídoto para isso é manter o nosso pensamento cativo à obediência de Cristo (2Co 10.5).

Salomão nos instrui quanto ao perigo de invejarmos o ímpio e de desejarmos conviver com ele. Esse homem é contagiante em suas maquinações para a violência as quais são verbalizadas para persuadir: “Não tenhas inveja dos homens malignos, nem queiras estar com eles, 2 porque o seu coração maquina (hg’h’) (hãgãh) violência, e os seus lábios falam para o mal” (Pv 24.1-2).

Davi descrevendo seus inimigos que se aproveitam de sua fragilidade circunstancial, escreve: “Armam ciladas contra mim os que tramam tirar-me a vida; os que me procuram fazer o mal dizem coisas perniciosas e imaginam (hg’h’) (hãgãh) engano todo o dia” (Sl 38.12).

 

O bom uso da imaginação

No entanto, a imaginação pode ser extremamente produtiva e útil quando a colocamos à disposição do serviço de Deus, na realização de projetos condizentes com a Palavra. Isso é válido para qualquer atividade, quer seja na arte, na visão missionária, quer próxima, quer distante, na elaboração de um livro, no planejamento de nosso mês, na preparação de uma festa, etc.

Podemos usar a nossa imaginação para visualizar o que pretendemos fazer e nos alegrar na consecução desses projetos.

O apóstolo Paulo é um exemplo positivo disso. Ele desejava muito visitar os crentes romanos; orava por aqueles irmãos. Enquanto isso, imaginava quando estivesse com eles, levaria uma mensagem instrutiva e um compartilhar da fé edificante e confortador.

Por volta do ano 57 A.D., estando em Corinto, escreve:

Porque Deus, a quem sirvo em meu espírito, no evangelho de seu Filho, é minha testemunha de como incessantemente faço menção de vós 10em todas as minhas orações, suplicando que, nalgum tempo, pela vontade de Deus, se me ofereça boa ocasião de visitar-vos. 11 Porque muito desejo ver-vos, a fim de repartir convosco algum dom espiritual, para que sejais confirmados, 12 isto é, para que, em vossa companhia, reciprocamente nos confortemos por intermédio da fé mútua, vossa e minha. (Rm 1.9-12).

Nesta ocasião Paulo acredita ter uma boa oportunidade de visitar Roma. Contudo, antes deve passar pela Judéia para levar as ofertas para os santos dali. Sua trajetória seria arriscada visto ter muitos inimigos na região.

Ele então pede aos crentes romanos:

 30 Rogo-vos, pois, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo e também pelo amor do Espírito, que luteis juntamente comigo nas orações a Deus a meu favor, 31 para que eu me veja livre dos rebeldes que vivem na Judéia, e que este meu serviço em Jerusalém seja bem aceito pelos santos; 32 a fim de que, ao visitar-vos, pela vontade de Deus, chegue à vossa presença com alegria e possa recrear-me convosco. (Rm 15.30-32).

A nossa imaginação meditativa tende a moldar o nosso comportamento,[19] reforçando propósitos, enchendo-nos de uma alegre perspectiva de concretização do que cremos ser útil e edificante.

Deus diz a Josué diante do desafio de conduzir o povo na terra prometida: “Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita (hg’h’) (hãgãh) nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido” (Js 1.8).

 

Ouvir e meditar: passos conducentes à prática

O ouvir e meditar são os passos conducentes à prática. O meditar sincero aprofunda a leitura nos propiciando uma compreensão mais ampla e piedosa da doutrina.

O meditar na Palavra e nos feitos de Deus é uma prática abençoadora pelo fato de, além de nos proteger de pensamentos vãos, ocupa nossas mentes e corações com o que realmente importa. Estimula a nossa gratidão e perseverança em meio às angústias.[20] Isto nos traz grande alívio.

Davi no deserto se confortava meditando nos feitos de Deus: “No meu leito, quando de ti me recordo e em ti medito (hg’h’) (hãgãh), durante a vigília da noite. Porque tu me tens sido auxílio; à sombra das tuas asas, eu canto jubiloso” (Sl 63.6-7/Sl 77.11-12; 143.5)

Meditar na Palavra tem o sentido de considerá-la em nossas decisões, refletir sobre os seus ensinamentos. A meditação deve, conforme o caso, modelar, corrigir, abandonar e confirmar o nosso comportamento. A meditação aqui é uma exortação à assimilação existencial da Palavra a fim de que esta se evidencie em nossa prática.

Comênio (1592-1670) escreveu sobre este assunto:

A meditação é a consideração frequente, atenta e devota das obras, das palavras e dos benefícios de Deus, e de como tudo provém de Deus (que opera ou permite) e de como, por caminhos maravilhosos, todos os desígnios da vontade divina são exatamente realizados.[21]

O nosso meditar na Palavra tem implicações direta em nossa santificação,[22] visto que se constitui em um estímulo constante, por graça de Deus, a que cumpramos os seus mandamentos.

Ao mesmo tempo, como nos adverte Calvino, a Palavra nos previne contra as armadilhas diabólicas que visam nos afastar de Deus:

Visto que Satanás está diariamente fazendo novos assaltos contra nós, é necessário que recorramos às armas, e é mediante a lei divina que somos munidos com a armadura que nos capacita a resistir. Portanto, quem quer que deseje perseverar em retidão e integridade de vida, então que aprenda a exercitar-se diariamente no estudo da Palavra de Deus; pois, sempre que alguém despreze ou negligencie a instrução, o mesmo cai facilmente em displicência e estupidez, e todo o temor de Deus se desvanece em sua mente.[23]

Como cristãos, talvez por partirmos do pressuposto equivocado de que a fé cristã é apenas uma questão de sentimento, corrermos o risco de reduzir a nossa fé e as Escrituras a apenas esta esfera da realidade. Desse modo, o nosso cultuar limita-se ao que sentimos, ainda que nada compreendamos ou mesmo, nos esforcemos por isso. Não podemos ser cristãos autênticos sem o cultivo de uma mente que também busque o amadurecimento.[24]

 

Considerações finais: Uma mente e um coração para Glória de Deus

Piper é preciso em sua orientação pastoral:

Pensar não é o alvo da vida. Pensar, como o não pensar, pode ser o alicerce para a vanglória. Pensar, sem oração, sem o Espírito Santo, sem obediência e sem amor ensoberbecerá e destruirá (1Co 8.1). Mas o pensar em submissão à poderosa mão de Deus, o pensar saturado de oração, o pensar guiado pelo Espírito Santo, o pensar vinculado à Bíblia, o pensar em busca de mais razões para louvar e proclamar as glórias de Deus, o pensar a serviço do amor – esse pensar é indispensável em uma vida de pleno louvor a Deus.[25]

Sabemos que cada época é, de certa forma, cativa de valores que são apresentados com status de racionalidade, objetividade, universalidade e perpetuidade. É extremamente difícil escapar dos encantos sedutores de nossa geração.[26]

Agostinho (354-430) comentando o Salmo 148, escreve:

Como nossos ouvidos captam nossas palavras, os ouvidos de Deus captam nossos pensamentos. Não é possível agir mal quem tem bons pensamentos. Pois as ações procedem do pensamento. Ninguém pode fazer alguma coisa, ou mover os membros para fazer algo, se primeiro não preceder uma ordem de seu pensamento, como do interior do palácio, qualquer coisa que o imperador ordenar, emana para todo o império romano; tudo o que se realiza através das províncias. Quanto movimento se faz somente a uma ordem do imperador, sentado lá dentro? Ao falar, ele move somente os lábios; mas move-se toda a província, ao se executar o que ele fala. Assim também em cada homem, o imperador acha-se no seu íntimo, senta-se em seu coração; se é bom e ordena coisas boas, elas se fazem; se é mau, e ordena o mal, o mal se faz.[27]

O que Paulo instrui a Timóteo é no sentido de que ele reflita sobre o que o Apóstolo lhe escreveu buscando a compreensão no Senhor. Reflexão e oração caminham juntas. Devemos, portanto, pensar sobre o pensar rogando a Deus a sua iluminação.[28] Deus, por graça, nos dará o discernimento sobre todas as coisas. O pensar, orar e discernir, deve ser um prelúdio à submissão sincera. Pense sobre isso.

Calvino é-nos útil aqui:

A essência da sabedoria celestial consiste nisto: que os homens, tendo seus corações fixos em Deus através de uma fé genuína e não fingida, o invoquem; e que, com o propósito de manter e nutrir sua confiança nele, se exercitem em meditar sinceramente nesses benefícios; e que, então, se lhe entreguem em obediência sincera e devotada.[29]

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1] Karl Barth, Barth in Conversation: Volume 1, 1959-1962,  “Interview by Alexander J. Seiler 1960”, p. 63-64. (Devo esta citação ao Dr. Jean Francesco Afonso Lima Gomes).

[2] R.C. Sproul, A Santidade de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 225.

[3]Apud  Willemien Otten, Religion as exercitatio mentis: A case for theology as a Humanism discipline: In:   Alasdair A. MacDonald, et. al. eds. Christian Humanism: Essays in Honour of Arjo Vanderjagt, Leiden: Brill Academic Pub., 2009, p. 60.

[4] Ver: Oliver Barclay, Developing a Christian Mind, Great Britain: Christian Focus, 2006, p. 16-17; Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 133-138.

[5]H. Bavinck, The Philosophy of Revelation, New York: Longmans, Green, and Co., 1909, p. 242.

[6]Apud Garrett J DeWeese; J.P. Moreland, Filosofia Concisa: uma introdução aos principais temas filosóficos, São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 154-155. (Do mesmo modo em: J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 15; William L. Craig, Apologética Cristã para Questões difíceis da vida, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 14-15). Da mesma forma, veja-se: Charles H. Malik, A Christian Critique of the university, (The Pascal Lectures on Christianity and the University), Downers Grove: InterVarsity Press, 1982, p. 19-20.

Cerca de 20 anos antes deste pronunciamento, Blamires (1916-2017), em sua obra clássica, A mente Cristã, constatava com tristeza (1963):

“Não existe mais uma mente cristã. Existe ainda, naturalmente, uma ética cristã, uma prática cristã e uma espiritualidade cristã. O cristão moderno, como ser moral, subscreve a um código diferente daquele do não cristão. Como membro da igreja, ele assume obrigações e observâncias ignoradas pelo não-cristão. Como ser espiritual, em oração e meditação, ele se esforça para cultivar uma dimensão de vida inexplorada pelo não-cristão. Mas como um ser pensante, o cristão moderno já sucumbiu à secularização” (Harry Blamires, A Mente Cristã: como um cristão deve pensar? São Paulo: Shedd Publicações, 2006, p. 15-16).Sobre este ponto, veja-se a excelente e densa obra de Carson: D.A. Carson, O Deus amordaçado: o Cristianismo confronta o pluralismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2013.

[7] João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.17), p. 184 (Veja-se a nota 5 in loc).

[8]Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 72. “O anti-intelectualismo encontrado na igreja representa uma calamidade, principalmente à luz do fato de que os cristãos deste lado do céu são o povo de um Livro e, portanto, são inevitavelmente pensadores” (David Mathis, Introdução – Pensar, amar, fazer: na perspectiva do Evangelho. In: John Piper; David Mathis, orgs. Pensar – Amar – Fazer,  São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 14).

[9]“Pensar não é tarefa somente para grandes filósofos. Nós estamos todos envolvidos. “Precisamos pensar profundamente no que significa o cristianismo e sua relação com as questões culturais” (H.R. Rookmaaker, A Arte não Precisa de Justificativa, Viçosa, MG.: Ultimato, 2010, p. 32).

[10]“Não posso conceber um homem sem pensamento: seria uma pedra ou um animal” (Blaise Pascal, Pensamentos, São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Os Pensadores, v. 16), VI.339. p. 127. Veja-se também, p. 128 e 130).

[11]Mortimer J. Adler, Como pensar sobre as grandes ideias, São Paulo: É Realizações, 2013, p. 21.

[12] “Os cristãos precisam pensar sobre o pensamento. (…) A maioria dos seres humanos, contudo nunca pensa profundamente sobre o ato de pensar. (…) Devido à devastação intelectual causada pela queda, temos a obrigação de pensar sobre o ato de pensar. Essa é a razão pela qual o discipulado cristão é, também, uma atividade intelectual” (R. Albert Mohler Jr., O modo como o mundo pensa: Um encontro com a mente natural no espelho e no mercado. In: John Piper; David Mathis, orgs. Pensar – Amar – Fazer, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 44,45,54).

[13]“Você não precisa acreditar em tudo o que pensa, e a razão é simples: nós vemos o que queremos ver. (…) O nervo óptico, o único nervo com ligação direta com o cérebro, na verdade transmite mais impulsos do cérebro para o olho do que vice-versa. Isto significa que seu cérebro determina o que o olho vê. Você já está precondicionado. É por isso que, se quatro pessoas presenciarem um acidente, cada uma vai relatar algo diferente. Precisamos nos lembrar, e ensinar aos outros, que não devemos acreditar em tudo o que pensamos” (Rick Warren, A batalha pela sua mente. In: John Piper; David Mathis, orgs. Pensar – Amar – Fazer, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 27).

Uma narrativa curiosa: “Em suas Memórias, Ludwig Richter [1803-1884] lembra uma passagem de sua juventude, quando certa vez, em Tivoli, ele e mais três companheiros resolveram pintar um fragmento de paisagem, todos firmemente decididos a não se afastarem da natureza no menor detalhe que fosse. E embora o modelo tivesse sido o mesmo e cada um tivesse sido fiel ao que seus olhos viam, o resultado foram quatro telas completamente diferentes – tão diferentes quanto as personalidades dos quatro pintores. O narrador concluiu, então, que não havia uma maneira objetiva de se verem as coisas, e que formas e cores seriam sempre captadas de maneira diferente, dependendo do temperamento do artista” (Heinrich Wölfflin, Conceitos Fundamentais da História da Arte, 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, (2ª tiragem) 2006, p. 1). (Observo que Wölfflin está associado ao surgimento da história da arte como uma disciplina científica na Alemanha no século XIX. Veja-se: Jean-Claude Schmitt, Imagens: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Bauru, SP.; São Paulo, SP.: Editora da Universidade Sagrado Coração; Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. 1, p. 591).

[14]Cf. Derek Kidner, Salmos 1-72: introdução e comentário, São Paulo: Mundo Cristão/Vida Nova, 1980, v.  1, (Sl 1.2), p. 63.

[15] “As crenças (…) têm fundamental importância. Elas dão forma ao nosso universo mental e nos fornecem um mapa do mundo complexo e não raro desconcertante em que habitamos. As crenças dos cristãos lhes proporcionam uma estrutura basilar para a prática da fé. A convicção na esperança futura do céu, por exemplo, tem um impacto muito grande sobre sua atitude para com a vida e a morte. Além disso, faz uma diferença colossal na conduta e no modo de pensar deles” (Alister McGrath, Palavra do Editor: In: Alister E. McGrath; J.I. Packer, orgs., Fundamentos do Cristianismo: um manual da fé cristã,  São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 13).

 

[16] Veja-se: Bruce K. Waltke; James M. Houston; Erica Moore, The Psalms as Christian Worship: A Historical Commentary, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 2010, (Sl 1.2), p. 139.

[17] Vejam-se: Mark D. Futato, Interpretação dos Salmos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 55-56; Hebert Wolf, Hagâ: In:  R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 337; Willem A. VanGemeren,  Psalms. In: Frank E. Gaebelein, ed. ger., The Expositor’s Bible Commentary,  Grand Rapids, Michigan: Zondervan,  1991, v.  5, (Sl 1), p. 55; M.V. Van Pelt; W.C. Kaiser, Jr., Hgh: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v.  1, p. 981-982; Helmer Ringgren; A. Negoitã, Haghah: In: G. Johannes Botterweck; Helmer Ringgren; Heinz-Josef Fabry, eds., Theological Dictionary of the Old Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdamans, 1978, v. 3, p. 321-324.

[18]“A aprendizagem é o processo mediante o qual a experiência passada do amor de Deus é traduzida, pelos aprendizes, em obediência à Torá de Deus” (D. Müller, Discípulo: In: Colin Brown, ed. ger. Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 662).

[19]“O coração do justo medita (hg’h’) (hãgãh) o que há de responder, mas a boca dos perversos transborda maldades” (Pv 15.28).

[20]“Quando formos premidos pela adversidade, ou envolvidos em profundas aflições, meditemos nas promessas de Deus, nas quais a esperança de salvação nos é demonstrada, de modo que, usando este escudo como nossa defesa, rompamos todas as tentações que nos assaltam” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999,  v. 1, (Sl 4), p. 89).

[21]João Amós Coménio, Didáctica Magna, 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1985), XXIV.7. p. 355.

[22]“Não podemos fazer progresso na santidade a menos que empreguemos mais tempo lendo e ouvindo a Palavra de Deus, e meditando sobre ela; pois é ela que é a verdade pela qual somos santificados” (Charles Hodge, O Caminho da Vida, New York: Sociedade Americana de Tractados, [s.d.], p. 294).

[23]João Calvino, O Livro dos Salmos, v.  1, (Sl 18.22), p. 383.

[24]“Nossas igrejas estão cheias de pessoas que são espiritualmente nascidas de novo, mas que ainda pensam como não cristãs” (William L. Craig, Apologética Cristã para Questões difíceis da vida, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 14). À frente: “Nossas igrejas estão cheias de cristãos intelectualmente preguiçosos” (p. 26). No mesmo diapasão: “Um cristianismo irrefletido só pode produzir um cristianismo fraco e carnal”  (Joel Beeke; Mark Jones, Teologia Puritana: Doutrina para a vida, São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 1196).

[25] John Piper, Pense – A Vida da Mente e o Amor de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 41.

[26]“Cada época caracteriza-se por determinadas crenças responsáveis por sua visão de mundo” (Alister E. McGrath, Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo: Loyola, 2005, p. 19).

[27]Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/3), 1998, v. 3, (Sl  148.1-2), p. 1126-1127.

[28]“Pensar intensamente sobre a verdade bíblica é o meio pelo qual o Espírito nos mostra a verdade” (John Piper: In: John Piper; D.A Carson, O Pastor Mestre e O Mestre Pastor, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 64).

[29]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3 (Sl 78.7), p. 202.

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