Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente – Parte 38

Anotações pontuais

A obra de Cristo é o que torna possível os pecadores viverem doxologicamente e trabalharem em obediência a Deus. – Ray Pennings.[1]

Retornando, vemos que o Protestantismo, com os seus princípios econômicos, com a sua ênfase no livre exame das Escrituras, na salvação pessoal e na responsabilidade de cada homem diante de Deus, contribuiu na esteira renascentista  – com algumas semelhanças e ainda maiores diferenças –  para a maturidade do homem moderno, enfatizando a responsabilidade individual perante Deus, sem excluir, contudo, o aspecto comunitário da vida cristã e a relevância da sociabilidade entre os fiéis.

 

Protestantismo e fé operante

Onde quer que o Protestantismo fincasse suas raízes, a sua influência se tornaria notória como uma força modeladora da cultura, não apenas da vida religiosa.[2] Lembremo-nos de que a Revolução Industrial ocorreu na Inglaterra Protestante e, de que F.W. Taylor (1856-1915), conhecido como “Pai da administração científica” e “Fundador da administração científica”, era protestante[3] e norte-americano.[4]

 

Trabalho e Glória de Deus

Max Weber (1864-1920), ao analisar o progresso econômico protestante, não conseguiu captar adequadamente este aspecto fundamental no protestantismo, que enfatiza o trabalho, não simplesmente pelo dever ou vocação, conforme Weber entendeu, mas para a glória de Deus. Este é o fator preponderante que escapou à sua compreensão.[5]

Precisamos aqui enfatizar alguns pontos já vistos.

As Escrituras nos ensinam que Deus nos criou para o trabalho (Gn 2.8,15). O trabalho, portanto, dentro do ciclo da Criação e da vida, faz parte do propósito de Deus para o ser humano, sendo objeto de satisfação humana: “Em vindo o sol, (…) sai o homem para o seu trabalho, e para o seu encargo até à tarde” (Sl 104.22-23).

Na concepção cristã, o trabalho dignifica o homem, devendo o cristão estar motivado a despeito do seu baixo salário, ou do reconhecimento humano, embora as Escrituras também observem que o trabalhador é digno do seu salário (Lc 10.7).

Seu trabalho deve ser entendido como uma prenda feita a Deus, independentemente dos senhores terrenos. Desse modo, o que de fato importa, não é o trabalho em si, mas o espírito com o qual ele é feito. A dignidade deve permear todas as nossas obras, visto que as realizamos para o Senhor e pela capacitação do Senhor: “Ao executarem o que Deus lhes determinou, os homens devem começar sempre com oração, invocando o nome de Deus e oferecendo-lhe seus labores, para que ele os abençoe”, instrui-nos Calvino.[6] O nosso trabalho revela a nossa percepção de Deus e de sua Criação.

A prestação de contas de nosso trabalho deverá ser feita a Deus. É Ele com o seu escrutínio perfeito e eterno quem julgará as obras de nossas mãos; por isso a recomendação do apóstolo Paulo:

 

E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus (…). Servos, obedecei em tudo aos vossos senhores segundo a carne, não servindo apenas sob vigilância, visando tão-só agradar homens, mas em singeleza de coração, temendo ao Senhor. Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor, e não para homens, cientes de que recebereis do Senhor a recompensa da herança. A Cristo, o Senhor, é que estais servindo; pois aquele que faz injustiça receberá em troco a injustiça feita; e nisto não há acepção de pessoas. Senhores, tratai aos servos com justiça e com equidade, certos de que também vós tendes Senhor no céu. (Cl 3.17,22-4.1)(Veja-se: Ef 6.5-9).

 

Assim, não há desculpas para a fuga do trabalho, mesmo em nome de um motivo supostamente religioso (1Ts 4.9-12/Ef 4.28; 1Tm 5.11-13).

Um comentarista bíblico resume bem o espírito cristão do trabalho, afirmando: “O trabalhador deve fazê-lo como se fosse para Cristo. Nós não trabalhamos pelo pagamento, nem por ambição, nem para satisfazer a um amo terreno. Trabalhamos de tal maneira que possamos tomar cada trabalho e oferecê-lo a Cristo”.[7] (Veja-se: 1Tm 6.1-2).

 

Trabalho compartilhado

Como vimos, desde a Criação o homem foi colocado numa posição acima das outras criaturas, cabendo-lhe o domínio sobre os outros seres criados, sendo abençoado por Deus com a capacidade de procriar-se (Gn 1.22)[8] e dispondo de grande parte da criação para o seu alimento (Gn 1.26-30; 2.9).

Conforme já dissemos, como sinal indicativo da posição elevada em que o homem foi colocado, o Criador compartilha com ele do poder de nomear os animais, e também de dar nome à sua mulher (Gn 2.19,20,23; 3.20). E mais: Deus delega-lhe poderes para cultivar e guardar o jardim do Éden (Gn 2.15), demonstrando a sua relação de domínio sobre a natureza. No entanto, todas estas atividades envolvem o trabalho compartilhado por Deus com o ser humano. O nomear, procriar, dominar, guardar e cultivar refletem a graça providente e capacitante de Deus.

O homem é um ser que trabalha. A sua mão é uma arma “politécnica”, instrumento exclusivo e incomparável de construção, reconstrução e transformação.[9]      É por meio de nossas mãos que exteriorizamos o nosso ser.[10] Faz parte da essência do homem trabalhar. O trabalho é algo bom em si mesmo, não, simplesmente, pelo que ele proporciona.[11] O homem é um artífice que constrói, transforma, modifica. A sua vida é um eterno devir, que se realiza no fazer como expressão do seu ser orientado e direcionando para valores que acredita serem relevantes.

Logo, o trabalho deve ter sempre um sentido axiológico.[12] O ser como não pode se limitar ao simples fazer, está sempre à procura de novas criações que envolvem trabalho. No trabalho, o homem concretiza a sua liberdade de ser. Acontece que se o homem é o que é, o seu trabalho revela parte da sua essência. A “originalidade” do seu trabalho será uma decorrência natural da sua autenticidade.[13] O homem autentica-se no seu ato construtivo, ainda que este seja resultado de suas tensões.[14] Por isso, nunca poderemos ter como meta da sociedade, a ausência do trabalho.

O trabalho não é resultado do pecado. O homem foi criado para o trabalho, não para permanecer na inatividade e indolência.[15] Por isso, aposentar-me de um determinado trabalho não significa abandonar a condição de “ser” que trabalha.[16] No trabalho nós expressamos e aperfeiçoamos a nossa humanidade, cumprindo a nossa vocação.[17] Deixar de trabalhar significa deixar de utilizar parte da sua potência, equivale a deixar parcialmente de ser homem, em outras palavras, seria uma desumanidade.

 

Secularização do conceito protestante

Lamentavelmente, o conceito Protestante do trabalho, no pensamento moderno, foi secularizado, abandonando aos poucos a concepção religiosa que lhe dera suporte, tornando-se agora apenas uma questão de racionalidade, não necessariamente de “vocação” ou de “glorificação a Deus”. Perdeu-se a “infraestrutura”, ficou-se apenas com a “superestrutura”.[18]

Delumeau (1923-2020) resume com pertinência: “Na verdade, o Protestantismo não engendrou em seus fiéis a mentalidade capitalista a não ser na medida em que perdeu seu tônus religioso e se tornou infiel a Calvino”.[19]

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

________________________________________________

[1] Ray Pennings, Trabalhando para a Glória de Deus. In: Joel R. Beeke, Vivendo para a Glória de Deus: Uma introdução à Fé Reformada, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2012 (reimpressão), p. 375.

[2] Veja-se: André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 540.

[3] Sua mãe era de origem puritana, tendo seus antepassados vindo para a América no “Mayflower” (Vejam-se: Frederick W. Taylor, Princípios de Administração Científica, 6. ed. São Paulo: Atlas Editora, 1966 (Informação no Prefácio da Obra), p. 7; Frank B. Copley, Frederick W. Taylor Father of Scientific Management, New York and London: Harper and Brothers, Publishers, 1923, v. 1, p. 23ss. (Na página 27 há uma árvore genealogia de seus antepassados).

[4]Veja-se: Idalberto Chiavenato, Teoria Geral da Administração, 3. ed. São Paulo: McGraw-Hill, 1987, v. 1, p. 65. Veja-se também, André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, p. 113ss.

[5] Vejam-se: também: Christopher Hill, O Eleito de Deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 195ss.; R.H. Tawney, A Religião e o Surgimento do Capitalismo, São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 114-115.

[6] João Calvino, Salmos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2009, v. 4, (Sl 127.2), p. 377.

[7]William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, v. 11, p. 176. Veja-se também: William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado,  v. 11, (2Ts 3.6-18), p. 226-227.

[8] “Embora aos homens seja de natureza infundido o poder de procriar, Deus quer, entretanto, que seja reconhecido a Sua graça especial que a uns deixa sem progênie, a outros agracia com descendência, pois que dádiva Sua é o fruto do ventre” (Sl 127.3) (João Calvino, As Institutas, I.16.7).

[9] Sobre as mãos como instrumento de trabalho, Veja-se: Oswald Spengler, O Homem e a Técnica, Lisboa: Guimarães e Cª Editores, 1980, III.5. p. 63ss.; Battista Mondin, O Homem, Quem é Ele?, São Paulo: Paulinas, 1980, p. 195-196.

[10]É magnífico o uso que Schaeffer faz desta figura para falar da “mão de Deus”, como uma expressão bíblica que transmite a ideia de um Deus pessoal que cuida de nós dentro das categorias espaço e tempo, bem como no além e depois (Veja-se: Francis A. Schaeffer, Não Há Gente Sem Importância, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 31-41).

[11] Veja-se: Ray Pennings, Trabalhando para a Glória de Deus. In: Joel R. Beeke, Vivendo para a Glória de Deus: Uma introdução à Fé Reformada, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2012 (reimpressão), p. 378.

[12] Tomei este conceito de Raymond Ruyer, Métaphysique du Travail, 1948. Cf. José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, v. 4, p. 2902.

[13] Lewis observou que, “O homem que valoriza a originalidade jamais será original. Mas tente dizer a verdade tal como você a vê, tente trabalhar com perfeição por amor ao trabalho, e aquilo que os homens chamam de originalidade surgirá espontaneamente” (C.S. Lewis, Peso de Glória, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 47).

[14] Se o “excesso” de trabalho em determinadas ocasiões assume a característica de uma “fuga”, como observou Rollo May, (A Arte do Aconselhamento Psicológico, Petrópolis, RJ.: Vozes, 1977, p. 24ss), não importa; de qualquer maneira, o “fazer”            revelará o homem que faz, bem como as suas circunstâncias.

[15]“Moisés acrescenta que a custódia do jardim fora a dada ao encargo de Adão, para mostrar que possuímos as coisas que Deus entregou às nossas mãos sob a condição de que, vivendo contentes com o uso sóbrio e moderado delas, nos preocupemos em manter aquilo que deve permanecer. Aquele que possui um campo, que então participe de seus frutos todos os anos, para não deixar o solo prejudicado por sua negligência; mas que labute para passá-lo à posteridade como o recebera, ou ainda mais cultivado. Assim, nutrindo-se de seus frutos, não os dissipe com o luxo, nem permita que sejam prejudicados ou arruinados pela negligência” (João Calvino, Série Comentários Bíblicos – Gênesis Volume 1, Recife, PE.: CLIRE,  2018, (Gn 2.15), p. 91).

[16] “Para o cristão, a aposentadoria é libertação para serviço. A pessoa aposentada poderá começar um capítulo totalmente novo na vida, em vez de ficar improdutiva. A filosofia cristã de trabalho é a de que o trabalho nunca está totalmente terminado” (E. Elton Trueblood, Trabalho: In: Carl F.H. Henry, org. Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 583). Veja-se também: Gene Edward Veith, Jr., Deus em Ação, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 39; 125.

[17] “…. o homem, por isso mesmo, desde o princípio é chamado ao trabalho. O trabalho é uma das características que distinguem o homem do resto das criaturas, cuja atividade, relacionada com a manutenção da própria vida, não se pode chamar trabalho; somente o homem tem capacidade para o trabalho e somente o homem o realiza preenchendo ao mesmo tempo com ele a sua existência sobre a terra. Assim, o trabalho comporta em si uma marca particular do homem e da humanidade, a marca de uma pessoa que opera numa comunidade de pessoas; e uma tal marca determina a qualificação interior do mesmo trabalho e, em certo sentido, constitui a sua própria natureza” (João Paulo II, Carta Encíclica Laborem Exercens, (1981).(https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091981_laborem-exercens.html (Consulta feita em 26.06.24).

[18]Biéler faz uma constatação relevante: “A íntima interpenetração da Reforma e da Renascença contribuiu amplamente para a sua promoção no Ocidente. Mas o materialismo e as ideologias substitutivas engendradas pela secularização do pensamento, no decurso dos séculos subsequentes, acabaram por fazer crer que uma civilização arrancada de suas raízes espirituais conseguiria produzir espontaneamente todos esses valores. Essas ideologias substitutivas proliferaram. (…) Todas essas ideologias, que tomaram o lugar da fé cristã, transformaram-se em crenças que, uma vez dissipadas, deixaram no Ocidente e no mundo atual um vácuo espiritual, e muitas vezes um desespero, que se mostram propícios a toda sorte de novidades inflamadas da demagogia religiosa, filosófica ou política” (André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, p. 54-55).

[19] Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 305.

 974 total views,  1 views today

Comments

G-BJPJGFD6S2