Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente – Parte 36

D. Somos Administradores dos Bens de Deus (Continuação)

3) A Justa Graça de compartilhar com alegria

Notemos bem como podemos ser sempre liberais mesmo quando mergulhados na mais terrível pobreza, se suprimos as deficiências de nossas bolsas pela generosidade de nossos corações. – João Calvino.[1]

A grandeza de nosso trabalho não está simplesmente no que fazemos, mas como e com qual objetivo o fazemos. É agradável a Deus que por meio de nosso trabalho (uso de nossos dons), a sociedade seja beneficiada.[2]

Calvino entende que o ato de repartir o que temos consiste em uma prática de justiça relacionada ao propósito de nossa existência:

Assim como não nascemos unicamente para nós mesmos, também o cristão não deve viver unicamente para si mesmo, nem usar o que possui somente para os seus propósitos particulares ou pessoais. (…)

Já que dar assistência às necessidades de nosso próximo é uma parte da justiça – e de forma alguma é a menor parte –, os que negligenciam esta parte de seu dever devem ser tidos na conta de injustos.[3]

A nossa “riqueza”, ou seja, suficiência, como resultado da bondade de Deus, tem um sentido social:

O Senhor administra em nosso favor tanto quanto nos é proveitoso, às vezes, mais e às vezes, menos, mas sempre na medida em que ficamos satisfeitos e que vale muito mais do que ter o mundo inteiro e sermos consumidos. Dentro desta suficiência devemos ser ricos para o bem de outrem. Porque Deus não nos faz o bem com o fim de cada um de nós guardar para si mesmo o que recebe, mas para que haja mútua participação entre nós, de acordo com os reclamos das necessidades.[4]

A ajuda aos nossos irmãos só se torna possível quando nos despimos da primazia de nossos interesses pessoais, quando renunciamos ao nosso direito em prol do outro.[5]

Que esta, pois, seja a regra para a benevolência e beneficência em nós: tudo quanto Deus nos dispensou com que possamos assistir o próximo, somos disso mordomos, mordomos que estão obrigados a prestar conta de nossa mordomia. Essa, afinal, é sobretudo a mordomia correta: a que se amolda à norma do amor. Assim acontecerá que não somente uniremos o zelo pelo proveito do próximo com a preocupação de nosso próprio benefício, mas até faremos com que nosso benefício seja subordinado ao proveito alheio.[6]

Ajudar aos necessitados deve ser entendido não como a perda de algum bem, antes, como um privilégio que é-nos concedido pela graça de Deus que nos capacita a sermos generosos e a suportar com paciência as tribulações.

Os membros de Cristo têm o dever de ministrar uns aos outros, de modo que, quando nos dispomos a socorrer nossos irmãos, não fazemos mais do que desempenhar o ministério que é também dever deles. Por outro lado, negligenciar os santos, quando necessitam de nosso socorro, é algo mais do que apenas ausência de bondade; é usurpá-los daquilo que lhes é devido.[7]

Em outro lugar:

Ainda que seja universalmente consensual que é uma virtude louvável prestar ajuda ao necessitado, todavia nem todos os homens consideram o dar como sendo uma vantagem, nem tampouco o atribuem à graça de Deus. Ao contrário disso, acreditam que alguma coisa sua, ao ser doada, perdeu-se.[8] No entanto, Paulo declara que quando prestamos auxílio aos nossos irmãos, devemos atribuí-lo à graça de Deus, e devemos considerá-lo um extraordinário privilégio a ser ardorosamente buscado. (…) Os homens rapidamente fracassam quando não são sustentados pelo Espírito do Senhor, que é o Autor de toda consolação, e uma inveterada carência de fé confiante nos permeia e nos mantém afastados de todos os deveres de amor até que superemos tudo isso pela graça do mesmo Espírito.[9]

Pregando em 30 de outubro de 1555, disse: “Deus mescla rico e pobre de um modo que eles podem se reunir e manter comunhão um com o outro, de maneira que o pobre recebe e o rico dá”.[10]

No entanto, essa ajuda não poderá ser com arrogância, antes deve ser praticada com amor, prontidão, humildade, cortesia, simpatia e alegria. Aliás, somente assim, as nossas esmolas se constituem em sacrifício agradável a Deus:

A esmola é um sacrifício agradável a Deus. Pois quando diz que Deus ama ao doador contente, ele deduz o contrário, ou seja: que Deus rejeita o constrangimento e a coerção. Não é sua vontade dominar-nos como tirano; Ele nos revela como Pai, portanto requer de nós a espontânea obediência de filhos.[11]

Todavia, Calvino constata com tristeza:

Quase ninguém é capaz de dar uma miserável esmola sem uma atitude de arrogância ou desdém. (…) Ao praticar uma caridade, os cristãos deveriam ter mais do que um rosto sorridente, uma expressão amável, uma linguagem educada.

Em primeiro lugar, deveriam se colocar no lugar daquela pessoa que necessita de ajuda, e simpatizarem-se com ela como se fossem eles mesmos que estivessem sofrendo. Seu dever é mostrar uma verdadeira humanidade e misericórdia, oferecendo sua ajuda com espontaneidade e rapidez como se fosse para si mesmos.

A piedade que surge do coração fará com que se desvaneça a arrogância e o orgulho, e nos prevenirá de termos uma atitude de reprovação ou desdém para com o pobre e o necessitado.[12]

Em nossa beneficência, nada devemos esperar em troca, ainda que esta seja uma prática comum. Aliás, “Cristo realmente nos adverte para algum propósito que é oportuno, quando estivermos dando esmolas, ou, seja, que a mão esquerda não saiba o que a direita está fazendo [Mt 6.3]”.[13]

Comentando o Salmo 68 enfatiza que o Deus da glória é também o Deus misericordioso. Em seguida, observa a atitude pecaminosa comum aos homens: “Geralmente distribuímos nossas atenções onde esperamos nos sejam elas retribuídas. Damos preferência a posição e esplendor, e desprezamos ou negligenciamos os pobres”.[14]

E quanto à ingratidão tão comum ao gênero humano? Bem, em nossa ajuda aos nossos irmãos não devemos nos preocupar com isso, visto que “ainda que os homens sejam ingratos, de modo que pareça termos perdido o que lhes damos, devemos perseverar em fazer o bem”.[15] E mais: “… não dependemos da gratidão humana, e, sim, de Deus que se coloca no lugar do pobre como devedor, para que um dia venha restituir-nos cheio de solicitude, tudo quanto distribuímos…”.[16]

4) O Valor de cada um

As pessoas devem ser avaliadas não pelo seu dinheiro, mas por sua piedade e temor a Deus. Os piedosos aprendem a reverenciar e a imitar os genuínos servos de Deus:

Aprendamos, pois, a não avaliar uma pessoa pelo prisma de seu estado ou seu dinheiro, nem pelo prisma de suas honras transitórias, mas avaliá-la pelo prisma de sua piedade ou de seu temor a Deus. E certamente que ninguém jamais aplicará verdadeiramente seu intelecto ao estudo da piedade que, ao mesmo tempo, também não reverencie os servos de Deus; da mesma forma, por outro lado, o amor que nutrimos por eles nos incita a imitá-los em sua santidade de vida.[17]

E. Socorro e Oração

Da Oração do Senhor, Calvino extrai o princípio de que devemos nos preocupar com todos os necessitados. Contudo sabendo da impossibilidade de conhecermos a todos e de termos recursos para ajudar a todos os que conhecemos, orienta-nos que a ajuda não exclui a oração nem esta àquela. Assim, devemos orar por todos:

O mandamento de Deus que nos compele a socorrer a indigência dos pobres é mandamento geral. E, todavia, os que obedecem a esse mandamento e com este fim fazem misericórdia estendendo seus bens a todos os que eles veem ou sabem que têm necessidade, não obstante não dão ajuda a todos os que têm igual necessidade, ou por não poderem conhecê-los a todos, ou porque não têm meios suficientes para supri-los. De igual modo, não contrariam a vontade de Deus aqueles que, considerando e tendo em mente a sociedade comum da igreja, a comunidade cristã, fazem uso das orações particulares por meio das quais, com palavras particulares, mas com espírito amplo e afeto comum, encomendam a Deus a si mesmos ou outros, cuja necessidade Ele lhes quis dar a conhecer mais de perto. Se bem que nem tudo que diz respeito à oração é semelhante a fazer caridade. Porque não podemos socorrer com os nossos bens senão aqueles cuja pobreza conhecemos, mas podemos e devemos ajudar pela oração mesmo aqueles dos quais não temos conhecimento, e que estão distantes de nós por qualquer distância que haja no tempo ou no espaço. Isso se faz por causa da amplitude geral das orações, amplitude que abrange todos os filhos de Deus, no número dos quais eles também estão incluídos.[18]

F. Uma Advertência geral

Comentando o 9º Mandamento, “Não furtarás”, Calvino admite que “há muitas espécies de ladrões”; contudo não quer se deter em demasia “fazendo listas das diferentes classes de furtos e roubos”. Resume, então:

Todos os meios utilizados pelos homens para enriquecimento com prejuízo de outros, afastando-se da sinceridade cristã, que deve ser mantida com carinho, e agindo com fingimento e astúcia, enganando e prejudicando o próximo – os que assim procedem devem ser considerados ladrões. Embora os que agem desse modo muitas vezes ganhem na defesa da sua causa diante do juiz, Deus não os considerará como outra coisa senão ladrões. Porque ele vê as armadilhas que pessoas da alta sociedade de longe armam para pegar gente simples em suas redes; Ele vê os pesados impostos e taxas que os grandes da terra impõem aos pequenos, para oprimi-los; Ele vê como são venenosas as lisonjas utilizadas por aqueles que querem destruir o próximo por meio de mentiras e outras formas de falsidade. Essas coisas geralmente não chegam ao conhecimento dos homens.

Além disso, transgressão deste mandamento não é só prejudicar alguém quanto a dinheiro, comércio ou direito de propriedade, mas também quanto ao não atendimento a qualquer dever nosso e a qualquer direito do próximo. Porque tanto defraudamos o nosso próximo usurpando os seus bens como lhe negando os serviços que lhe devemos prestar. Assim, se um procurador ou mordomo ou administrador, em vez de zelar dos bens entregues aos seus cuidados, viver na ociosidade, sem se preocupar com o seu dever de procurar o bem daquele que lhe dá o sustento; se desperdiçar ou empregar mal o que lhe foi confiado, ou o gastar em coisas supérfluas; se o empregado zombar do seu chefe ou patrão, se divulgar os seus segredos, ou se planejar algo contra os bens dele ou contra a sua reputação ou contra a sua vida [Rm 13;1Pe 2; Tt 3]; se, por outro lado, o chefe ou patrão ou pai tratar desumanamente os seus subordinados ou a sua família, para Deus é um ladrão. Porque, aquele que não pratica o que a sua vocação o manda fazer pelos outros, com isso retém o que pertence a outros.[19]

Em 1562, escreve esta oração para ser feita antes do trabalho:

Nosso bom Deus, Pai e salvador, uma vez que a ti te aprouve ordenar que trabalhemos para podermos atender à nossa indigência, por tua graça, de tal modo abençoa nosso labor que tua bênção estenda até nós, sem o que ninguém poderá prosperar no bem, e que tal favor nos sirva para testemunho de sua bondade e assistência mercê da qual reconheçamos o paternal cuidado que tens de nós. Ademais, Senhor, que te apraza assistir-nos por teu Santo Espírito, para que possamos exercer fielmente nossos múnus e vocação sem qualquer dolo ou engano, pelo contrário, que tenhamos antes o propósito de seguir tua injunção que satisfazer o desejo de enriquecer-nos; que se, não obstante, a ti te apraz prosperar nosso labor, que também nos dês a disposição de proporcionar a assistência àqueles que estão na indigência, segundo os recursos que nos houveres dado, retendo-nos em toda humildade, a fim de que nos não elevemos acima daqueles que não hajam recebidos tal abundância da tua dadivosidade. Ou, se nos queres tratar em maior pobreza e indigência do que desejaria nossa carne, que te apraza fazer-nos a graça de acrescentar fé em tuas promessas, para fazer-nos seguros de que nos haverás de, por tua bondade, prover-nos sempre o sustento, de sorte que não caiamos na desconfiança; antes, pelo contrário, esperemos pacientemente que nos cumules não somente de tuas graças temporais, mas também de suas graças espirituais, para que tenhamos sempre mais amplo motivo e ocasião de render-te graças e descansar inteiramente em tua só bondade. Ouve-nos, Pai de misericórdia, por Jesus Cristo, teu Filho, nosso Senhor.[20]

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 8.2), p. 167.

[2] “Não haverá escusa para a indolência daqueles que tanto ocultam os dons divinos como gastam seu tempo na ociosidade. Daí inferimos ainda que nenhuma forma  de vida é mais digna de louvor, à vista de Deus, do que aquela que produz algum benefício à sociedade humana” (John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 2, (Mt 25.24), p. 444).

[3] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.10), p. 193.

[4] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.8), p. 191.

[5] Cf. João Calvino, As Institutas,

[6] João Calvino, As Institutas, (2006), III.7.5.

[7] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.1), p. 186-187. Beza narra que com o grande crescimento da igreja em Genebra, composta intensamente de imigrantes, “deu azo a que os estrangeiros que aqui vinham radicar-se formassem uma associação com vistas a subvencionar as diretas necessidades de seus pobres, para que a cidade não fosse sobrecarregada em demasia” (Theodoro de Beza, A Vida e a Morte de João Calvino, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 38).

[8]Quando fazemos o bem nada perdemos; é Deus mesmo que nos recompensará, na eternidade e aqui: “O que sai de nós para alguém, parece diminuir o que possuímos; mas o tempo da ceifa virá, quando os frutos aparecerão e serão recolhidos. Pois o Senhor considera o que é doado aos pobres como sendo doado a Ele mesmo, e um dia reembolsará o doador com fartos juros. (…) Esta colheita deve ser entendida tanto em termos de recompensa espiritual de vida eterna com também sendo uma referência às bênçãos terrenas com as quais o Senhor agracia o benfeitor. Não é somente no céu que o Senhor recompensará os feitos nobres do justo, mas o fará ainda neste mundo” (João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.6), p. 189).

[9]João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 8.1), p. 166.

[10] João Calvino, Sermon Dt 15.11-15 (Sermão 95): In: Herman J. Selderhuis, ed. Calvini Opera Database 1.0, Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 27), col. 342.

[11]João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.7), p. 190. Comentando Romanos, analisando uma possibilidade de interpretação da palavra “liturgia” empregada por Paulo, escreve: “Paulo, estou plenamente certo, está se referindo a algum tipo de sacrifício feito pelos crentes, quando dão de sua própria subsistência para mitigar a pobreza de seus irmãos. Ao quitarem uma dívida de amor, à qual se achavam penhorados, oferecem a Deus, ao mesmo tempo, um sacrifício de aroma suave” (João Calvino, Romanos, 2. ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 15.27), p. 514-515).

[12]João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 39.

[13]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 18, (At 5.1), p. 196.

[14]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 68.4-6), p. 645.

[15] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 8.10), p. 173. “É realmente verdade que não há nada que fira tanto os que possuem uma disposição mental ingênua que quando os perversos e ímpios os recompensam de forma um tanto desonrosa e injusta. Mas quando ponderam sobre esta consoladora consideração, de que Deus não é menos ofendido com tal ingratidão do que aqueles a quem se faz a injúria, eles não têm nenhuma justificativa de se magoarem com tanto excesso” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 38.19-20), p. 192).

[16] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 16.2), p. 500.

[17] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 15.4), p. 294. Vejam-se também: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 17.14), p. 346; v. 2, (Sl 41.1), p. 240-241.

[18]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 121.

[19]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 1, (I.3), p. 207-208. Em outro lugar: “Quando, pois, a fraude, a astúcia, a traição, a crueldade, a violência e a extorsão reinam no mundo; em suma, quando todas as coisas são arremessadas em total desordem e escuridão, pela injustiça e perversidade, que a fé sirva como uma lâmpada a capacitar-nos para visualizarmos o trono celestial de Deus, e que essa visão nos seja suficiente para fazer-nos esperar pacientemente pela restauração das coisas a um melhor estado” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 11.4), p. 240). No mundo, “Deus não é um espectador indolente” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 11.4), p. 241).

[20]In: Herman J. Selderhuis, ed. Calvini Opera Database 1.0, Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 6, p. 138. (Vali-me da tradução feita na obra de André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 513).

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