Rei e Pastor – O Senhor na visão e vivência dos salmistas – Parte 4
Provas da existência de Deus?
As Escrituras não gastam tempo discutindo sobre as “provas da existência de Deus”, antes, nos apresentam um Deus que fala e age. A Bíblia parte do pressuposto da existência de Deus. Deus é o Senhor. Ele é um ser necessário e concreto.[1]
Muito de o seu agir é agenciado por sua palavra que cria, recria, sustenta e transforma (Gn 1.1/Gn 2.4).[2] Antes de tratar da matéria, as Escrituras iniciam com o Deus que cria e depois, narra o que realizou.
As primeiras palavras das Escrituras fornecem o fundamento de toda a nossa compreensão teológica. No primeiro verso de Gênesis temos uma profunda proposição ontológica e epistemológica.[3] A negação dessa declaração revelacional: “No princípio, Deus” -, acarreta, um caos em nossa epistemologia, possibilitando a fabricação de um deus esvaziado de seu poder e glória, produto de nossa imaginação[4] o, que pode pavimentar o caminho para um total ateísmo.
A idolatria é a carência de Deus em rebeldia contra o Deus das Escrituras revelado em Cristo. Um teísmo sem Cristo é uma religião vaga, sem sentido, desprovida de significado e sem salvação. Por sua vez, o caminho natural da idolatria, não é um teísmo, ainda que vago, mas, o deísmo ou ateísmo.
Um dos fundamentos da doutrina cristã é a certeza de que cremos em um Deus soberano,[5] Todo-Poderoso[6] que nos ama e se dá a conhecer pessoalmente a nós.
Sem a revelação de Deus seria impossível crer ou falar de Deus.[7] No entanto, nós podemos conhecê-lo genuína e pessoalmente. Nesse sentido, exulta o salmista: “Conhecido ([d;y”) (yada’)[8] é Deus em Judá; grande (lAdG”) (gadol) (= supremo), o seu nome em Israel” (Sl 76.1).
O Senhor em sua Palavra, além de nos revelar facetas sublimes de sua natureza, nos dá a conhecer aspectos de seu propósito eterno, que envolve o seu amor que antecede à nossa criação, o seu cuidado para conosco nos instruindo como devemos viver, a correção quando nos desviamos, e, a garantia final de nossa salvação futura já assegurada.
Aqui vemos uma diferença bastante significativa entre a narrativa/concepção bíblica e toda filosofia antiga. A diferença ontológica está no fato de que Deus se distingue da matéria criada. Ele, somente Ele, é necessário, essencial, eterno e absoluto; de nada precisa. Toda a criação não é necessária nem se sustenta; é contingente e essencialmente sustentada para que possa existir.
Há também uma diferença epistemológica porque os escritores bíblicos não estão preocupados em explicar, argumentar, provar ou demonstrar a existência de Deus, antes, creem que Ele existe, é autônomo e autopoderoso.[9] Todo o conhecimento possível advém desse mesmo Deus que se revela.
Transcendência e imanência
Desta forma, afirmamos a transcendência de Deus, negando com isso o panteísmo; e, também afirmamos a imanência de Deus, partindo de um fato real: a Revelação de Deus, negando, portanto, o deísmo. A fé cristã sustenta a criação de todas as coisas pela vontade livre, que nos é inacessível, e soberana de Deus e, ao mesmo tempo, a manutenção dessa realidade por meio deste Deus pessoal e que se revela, se relacionando conosco.
A Bíblia ensina essas duas verdades:
1) O Céu e a Terra não podem conter Deus: 1Rs 8.27; Is 66.1; At 7.48,49.
2) Todavia, Ele sustenta os Céus e a Terra, estando especial e qualitativamente próximo daqueles que sinceramente o buscam: Sl 139.7-10; Is 57.15; Jr 23.23,24; At 17.27,28. Calvino exulta: “A glória de nossa fé é que Deus, o Criador do mundo, não descarta nem abandona a ordem que Ele mesmo no princípio estabelecera”.[10]
Apresentando a questão de outro modo, podemos dizer que o nosso Deus é soberano sobre todas as coisas (Transcendente) e onipresente, estando presente em toda criação (Imanente).[11]
Foi com este Deus que nossos primeiros Pais se relacionavam, mas, optaram por rejeitarem-no, justamente porque tinham a pretensão de serem iguais a Ele.
Quando voltamos ao livro de Gênesis, vemos em Adão o conceito de pecado, limitação, transitoriedade e, paradoxalmente, o desejo de ser igual a Deus; portanto, presunção e arrogância.
Quando contemplamos a cruz de Cristo, deparamo-nos com o Deus encarnado, o Senhor glorioso e o Servo sofredor, onde há plenitude de conhecimento e de sabedoria (Cl 2.3) que ultrapassam totalmente a nossa capacidade de compreensão.
Por maravilhosa graça, podemos então ter um verdadeiro conhecimento de Deus e da realidade. A epistemologia cristã, como qualquer outra, parte do pressuposto de que há um mundo real e, que este mundo é acessível. Não enxergamos simplesmente miragens, antes, temos contato com a realidade que é autoevidente. Por isso, mesmo admitindo que as percepções da realidade variam devido a questões intelectuais, físicas, emocionais e circunstanciais, podemos, assim mesmo conhecer, e chegar a um grau bastante consistente de senso comum.
Isso não significa que possamos esgotar o mundo real ou, que em todos os pontos do conhecimento teremos unanimidade, antes, que é possível submeter o nosso conhecimento ao que é considerado absoluto, podendo, assim, sujeitar as nossas compreensões a um aperfeiçoamento constante. Contudo, conforme escrevemos em outro lugar, uma visão conjunta, considerando as visões diferentes e complementares de pessoas, lugares e épocas diferentes, ainda que não esgotem o fenômeno, podem nos ajudar a obter uma compreensão mais rica e completa. Aliás, há ciência justamente porque pensamos haver essa possibilidade.
A ciência é transitória e, justamente é transitória por ser uma ciência humana, em construção e depuração.[12] No entanto, talvez falte a ela a consciência de sua própria limitação. Ela pouco se conhece. Como escreveu Morin: “A questão ‘o que é a ciência?’ é a única que ainda não tem nenhuma resposta científica”.[13]
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] Cf. Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?, São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 72.
[2]“Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados, quando o SENHOR Deus os criou” (Gn 2.4).
[3] Veja-se palestra que fiz na 5ª Conferência Teológica do Seminário JMC. Palestra ministrada no dia 28.04.2023:
[4] “Tanto nas épocas antigas como hoje, os ídolos se conformam à imaginação de quem os cria. Os ídolos têm, com o verdadeiro Deus, semelhanças o bastante para serem plausíveis, mas diferem no sentido de que nos deixam confortáveis e com a satisfação de manipular os substitutos que construímos” (Vern S. Poythress, Redimindo a Matemática: uma abordagem teocêntrica, Brasília, DF.: Monergismo, 2020, p. 20-21). “Essa é a essência da idolatria: substituir a realidade por uma imitação. Distorcemos a verdade do Senhor e reconfiguramos nosso entendimento acerca dele de acordo com nossas próprias preferências, ficando com um Deus que é tudo, exceto santo” (R.C. Sproul, A santidade de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 205).
[5] “33Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! 34 Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? 35 Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? 36 Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.33-36).
[6] “No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada” (Sl 115.3). “Tudo quanto aprouve ao SENHOR, ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos” (Sl 135.6). “… O meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade” (Is 46.10). “Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Dn 4.35). “Nele (Jesus Cristo), digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11).
[7]“A revelação cristã não é somente necessária para que se possa crer no Deus da religião cristã, como também não tem sentido imaginar que se possa conhecer a existência desse mesmo Deus de outro modo que não pela fé em sua própria revelação” (Étienne Gilson, O Filósofo e a Teologia, São Paulo; Santo André, SP.: Paulus; Academia Cristã, 2021, p. 88).
[8]([d;y”) (yada’). Este conhecimento envolve a capacidade de discernir (Sl 4.4), experimentar (Sl 9.11; 20.7; 25.4.14; 119.75; 139.1,2,4; 139.14), ver (Sl 16.11); pensar/perceber (Sl 35.8); perfeito conhecimento (Sl 37.18; 44.21; 50.11; 69.5; 94.11; 103.14; 139.23; 142.3); conhecimento íntimo e pessoal (Sl 51.3); intimidade/proximidade (Sl 55.13; 88.18); compreender (Sl 73.16); aprender (Sl 78.3); ensinar (Sl 90.12); fazer notório/manifestar (Sl 98.2; 103.7; 145.12).
[9]Ele é “independente e verdadeiramente autopoderoso”, sintetiza Turretini. (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 334). Do mesmo modo, veja-se também a p. 547. Veja-se o instrutivo e edificante capítulo de MacArthur: John F. MacArthur, Jr., Deus: face a face com Sua Majestade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 91-107.
[10] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 11.4-5), p. 241.
[11] Veja-se: John Frame, Teologia Sistemática, São Paulo: Cultura Cristã, 2019, v. 1, p. 92ss.
[12] Gene Edward Veith, Jr., De todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 57. Vejam-se também: K.R. Popper, A Lógica da Investigação Científica, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 44), 1975, § 85. p. 383, 384; Karl R. Popper, O Realismo e o objectivo da ciência, (Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, v. 1), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, * 27, p. 234-235; Jean Piaget, A Epistemologia Genética, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 51), 1975, p. 129-130).
[13]Edgar Morin, Ciência com consciência, 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 21. À frente: “A questão ‘o que é ciência?’ não tem resposta científica. A última descoberta da epistemologia anglo-saxônica afirma ser científico aquilo que é reconhecido como tal pela maioria dos cientistas. Isso quer dizer que não existe nenhum método objetivo para considerar ciência objeto de ciência, e o cientista, sujeito” (Edgar Morin, Ciência com consciência, p. 119). “A ciência não controla sua própria estrutura de pensamento. O conhecimento científico é um conhecimento que não se conhece. Essa ciência que desenvolveu metodologias tão surpreendentes e hábeis para apreender todos os objetos a ela externos, não dispõe de nenhum método para se conhecer e se pensar” (Edgar Morin, Ciência com consciência, p. 20). Para uma abordagem mais amplo desse assunto. Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Uma fé que investiga e uma ciência que crê, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2020.
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