Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente – Parte 35

D. Somos Administradores dos Bens de Deus

Visto que nosso Pai celestial nos concede todas as coisas por sua livre graça, devemos ser imitadores de sua graciosa benevolência, praticando também atos de bondade em favor de outrem; e em razão de nossos recursos virem dele, não somos mais que despenseiros dos dons de sua graça. – João Calvino.[1]

1) Tudo Pertence a Deus

As Escrituras nos ensinam que todas as coisas nos são dadas pela benignidade de Deus e são destinadas ao nosso bem e proveito. É Deus quem nos dá a semente para semearmos e o pão como alimento. É Ele quem nos concede os meios para nossa subsistência e abençoa o nosso trabalho. (2Co 9.10-11).[2]

Deus nos trata como seus despenseiros. Desse modo, tudo que temos constitui-se em um depósito do que um dia teremos de dar conta. “Temos, pois, de administrá-las como se de contínuo, ressoasse em nossos ouvidos aquela sentença. ‘Dá conta de tua mordomia’ (Lc. 16.2)”.[3]

Deus concede-nos bens para que os gerenciemos. Ele continua sendo o Senhor de tudo:

Quando Deus nos envia riquezas não renuncia a sua titularidade, nem deixa de ter senhorio sobre elas (como o deve ter) por ser o Criador do mundo. (…) E ainda que os homens possuam cada um sua porção segundo Deus os há engrandecido mediante os bens deste mundo, não obstante, ele sempre continuará sendo Senhor e Dono de tudo.[4]

Portanto,

O uso legítimo de todas as graças consiste em compartilhar liberal e generosamente com os outros. Nenhuma regra mais certa, nenhuma exortação mais sólida para mantê-la, se podia cogitar do que onde somos ensinados que todos os dotes de que somos possuidores são dádivas de Deus, creditadas à nossa confiança com esta condição: que sejam administradas em benefício do próximo  [1Pe 4.10].[5]

2) O Sentido da Riqueza

Os crentes gozam de genuína riqueza quando confiam na providência divina que os mantém com suficiência e não se desvanecem em fazer o bem por falta de fé. (…) Ninguém é mais frustrado ou carente do que aquele que vive sem fé, cuja preocupação com suas posses dilui toda a sua paz. – João Calvino.[6]

Para Calvino, a riqueza residia em não desejar mais do que se tem, e a pobreza, o oposto.[7] Por sua vez, também entendia, que a prosperidade poderia ser uma armadilha para a nossa vida espiritual: “Nossa prosperidade é semelhante à embriaguez que adormece as almas”.[8]  Elas, ilusoriamente, fazem com que “nos lisonjeemos”  e, assim, nos impedem de ouvir a Deus.[9] Em outro lugar: “Aqueles que se aferram à aquisição de dinheiro e que usam a piedade para granjearem lucros, tornam-se culpados de sacrilégio.[10]

Calvino elogia a prontidão de Abraão em atender ao chamado de Deus. Destaca o seu desapego às suas riquezas e, ao mesmo tempo, combate a injustificada  apologia à pobreza feita por alguns:

Sabemos o quanto a posse de moderada riqueza impede muitos de erguerem sua cabeça para o céu, enquanto os que realmente possuem abundância, não só se mostram apáticos na indolência, mas também estão completamente presos às coisas terrenas. (…)

Por isso mesmo, os ricos não têm nenhuma desculpa, caso se tornem tão arraigados à terra, que não atendam ao chamado de Deus.

Entretanto, aqui se deve guardar de dois extremos. Muitos põem na pobreza a perfeição angelical, como se fosse impossível praticar a piedade e servir a Deus, a menos que as riquezas sejam lançadas fora. (…)

Devemos precaver-nos do mal oposto, para que as riquezas não sejam uma pedra de tropeço em nosso caminho, ou nos sobrecarreguem tanto, que percamos a mínima prontidão de avançar rumo ao reino do céu.[11]

Para o nosso bem, o Senhor nos ensina por meio de várias lições a vaidade dessa existência, já que a prosperidade, por vezes, nos conduz à indolência e arrogância.[12]

Portanto, os servos de Deus não podem ser reconhecidos simplesmente pela sua riqueza. A nossa suficiência está em Deus, aquele que soberanamente nos abençoa.[13] Assim, “… É uma tentação muito grave, ou seja, avaliar alguém o amor e o favor divinos segundo a medida da prosperidade terrena que ele alcança”.[14]

Esclarecendo uma interpretação errada de Eclesiastes 9.1,[15] afirma:

Se alguém quiser julgar pelas coisas presentes quem Deus ama e quem Deus odeia, trabalhará em vão, visto que a prosperidade e a adversidade são comuns ao justo e ao ímpio, ao que serve a Deus e ao que Lhe é indiferente. De onde se infere que nem sempre Deus declara amor aos que Ele faz prosperar temporalmente, como tampouco declara ódio aos que Ele aflige.[16]

Comentando o Salmo 62.10, diz:

Pôr o coração nas riquezas significa mais que simplesmente cobiçar a posse delas. Implica ser arrebatado por elas a nutrir uma falsa confiança. (…) É invariavelmente observado que a prosperidade e a abundância engendram um espírito altivo, levando prontamente os homens a nutrirem presunção em seu procedimento diante de Deus, e a se precipitarem em lançar injúria contra seus semelhantes. Mas, na verdade o pior efeito a ser temido de um espírito cego e desgovernado desse gênero é que, na intoxicação da grandeza externa, somos levados a ignorar quão frágeis somos, e quão soberba e insolentemente nos exaltamos contra Deus.[17]

Ele considera a cobiça de dinheiro uma “praga” que, conforme nos ensina Paulo (1Tm 6.10), traz muitos males: “Os que sofrem dessa praga gradualmente se degeneram até que renunciam completamente a fé”.[18]

Contrário a isso, devemos em todas as coisas ser gratos a Deus, quem nos confere tudo o que temos, usando com prudência dos bens que ele nos concede para o seu serviço. “Quanto mais liberalmente Deus trate alguém, mais prudentemente deve ele vigiar para não ser preso em tais malhas”.[19]

Não podemos confiar nas riquezas mas, em Deus que, se lhe aprouver, nos concede tais bens. Quando não percebemos isso, cometemos tremendo equívoco, atribuindo aos bens passageiros, o que pertence apenas a Deus:

É unicamente Deus quem provê todas as coisas para os propósitos necessários de nossa vida, e quando depositamos nossa confiança nas riquezas, na verdade estamos transferindo para elas as prerrogativas que pertencem exclusivamente a Deus. Note-se o contraste implícito ao dizer que Deus distribui literalmente com todos. O significado é o seguinte: mesmo que possuamos plena e rica abundância de todas as coisas, na verdade tudo quanto possuímos procede da mercê divina. É tão-somente sua generosidade que nos supre de tudo quanto carecemos. Segue-se que é um terrível equívoco confiar nas riquezas e não depender completamente da mercê divina, na qual há para nós suficiência, alimento e tudo mais. Portanto, concluímos que somos proibidos de confiar nas riquezas, não apenas com base no fato de que pertençam só a esta vida mortal, mas também porque não passam de fumaça. Nossa nutrição não procede apenas do pão [material], mas de toda a munificência divina [Dt 8.3].[20]

Do mesmo modo, as aflições não devem ser vistas de forma mística e supersticiosa:

É certamente um erro muitíssimo comum entre os homens olharem eles para os que se acham oprimidos com angústias como se fossem condenados e réprobos. Visto que, de um lado, a maioria dos homens, julgando o favor divino pelo prisma de um estado incerto e transitório de prosperidade, aplaudem os ricos e aqueles para quem, como dizem, a fortuna sorri. E então, de outro lado, agem com desprezo em relação aos que enfrentam infortúnio e miséria, e estultamente imaginam que Deus os odeia por não exercer sobeja clemência para com eles como o faz em favor dos réprobos. O erro do qual falamos, consiste em que a atitude de se julgar injusta e impiamente é algo que tem prevalecido em todas as eras do mundo. As Escrituras em muitas passagens clara e distintamente afirmam que Deus, por várias razões, prova os fiéis com adversidades, numa ocasião para exercitá-los à paciência, e noutra para subjugar as inclinações pecaminosas da carne, e ainda noutra para purificá-los dos resíduos que restam das paixões da carne, os quais ainda persistem neles. Às vezes para humilhá-los, às vezes para fazer deles um exemplo para outros, e, ainda, outras vezes para instigá-los à contemplação da vida celestial.[21]

Isto por que,

Riquezas e outros confortos mundanos devem ser vistos como que propiciando alguma experiência do favor e benevolência divinos, mas não se deduz daí que os pobres sejam objetos do desprazer divino. Ter um corpo saudável e boa saúde são bênçãos de Deus, porém não devemos conceber que isso constitua prova de que a fraqueza e a enfermidade devam ser consideradas com desaprovação.[22]

Quanto ao dinheiro, como tudo que temos provém de Deus, “o dinheiro em minha mão é tido como meu credor, sendo eu, como de fato sou, seu devedor”.[23]

Somos sempre e integralmente dependentes de Deus: “Um verdadeiro cristão não deverá atribuir nenhuma prosperidade à sua própria diligência, trabalho ou boa sorte, mas antes ter sempre presente que Deus é quem prospera e abençoa”.[24]

Aquele mesmo Jesus que em sua vida terrena viveu de forma sóbria e modesta, combatendo todo excesso, soberba, ostentação e vaidade, é quem nos pedirá conta do que fizemos e como utilizamos os recursos que Ele nos concedeu.

Portanto, ao fazer o bem a nossos irmãos e mostrar-nos humanitários, tenhamos em mente esta regra: que de tudo quanto o Senhor nos tem dado, com o que podemos ajudar a nossos irmãos, somos despenseiros; que estamos obrigados a dar conta de como o temos realizado; que não há outra maneira de despensar devidamente o que Deus pôs em nossas mãos, que ater-se à regra da caridade. Daí resultará que não somente juntaremos ao cuidado de nossa própria utilidade a diligência em fazer bem ao nosso próximo, senão que incluso, subordinaremos nosso proveito aos demais.[25]

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 8.4), p. 169.

[2] 10 Ora, aquele que dá semente ao que semeia e pão para alimento também suprirá e aumentará a vossa sementeira e multiplicará os frutos da vossa justiça,  11 enriquecendo-vos, em tudo, para toda generosidade, a qual faz que, por nosso intermédio, sejam tributadas graças a Deus” (2Co 9.10-11).

[3] J. Calvino, Institución de la Religión Cristiana, III.10.5. Ver também John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., 1996 (Reprinted), v. 1, (Gn 2.15), p. 125.

[4]Juan Calvino, El Señor dio y El Señor quito: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 2), p. 42.

[5] João Calvino, As Institutas, (2006), III.7.5.

[6] João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.11), p 193-194.

[7] “Confesso, deveras, que não sou pobre; pois não desejo mais além daquilo que possuo” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 46). “Nossa cobiça é um abismo insaciável, a menos que seja ela restringida; e a melhor forma de mantê-la sob controle é não desejarmos nada além do necessário imposto pela presente vida; pois a razão pela qual não aceitamos esse limite está no fato de nossa ansiedade abarcar mil e uma existências, as quais debalde sonhamos só para nós” (João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.7), p. 168).

[8]Juan Calvino, El Uso Adecuado de la Afliccion: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 19), p. 227. “Certamente, o marfim, o ouro e as riquezas são boas criaturas de Deus, permitidas, e até destinadas ao uso dos homens; também em nenhum lugar se proíbe ao homem rir ou fartar-se ou adquirir novas propriedades ou deleitar-se com instrumentos musicais ou beber vinho. É certo. Mas, quando alguém goza abundância de bens, se ele se deixar envolver pelas coisas que lhe causam deleite, embriagar sua alma e seu coração com os prazeres desta vida e viver buscando outros novos, muito longe estará do uso santo e legítimo dos dons de Deus” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.14), p. 96-97. Ver também: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 30.6), p. 631; As Pastorais, (1Tm 6.17), p. 181.

[9]John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, (Calvin’s Commentaries), 1996, v. 7/2,  (Is 17.3), p. 23.

[10]João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.6), p. 168. “Todos quantos têm como seu ambicioso alvo a aquisição de riquezas se entregam ao cativeiro do diabo” (João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.8), p. 169).

[11] João Calvino, Série Comentários Bíblicos – Gênesis Volume 1,  Recife, PE.: CLIRE, 2018, (Gn 13.1-2), p. 367-368.

[12] Vejam-se: João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 60; John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, (Calvin’s Commentaries), 1996, v. 7/1,  (Is 7.2; 10.3,23; 16.6).

[13] “…. a glória de Deus deve resplandecer sempre e nitidamente em todos os dons com os quais porventura Deus se agrade em abençoar-nos e em adornar-nos. De sorte que podemos considerar-nos ricos e felizes nele, e em nenhuma outra fonte” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 48.3), p. 356).

[14]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 17.14), p. 346. Pelo contrário, em outros lugares, ele diz: “Se, então, nós temos cometido fornicação contra Deus, toda nossa prosperidade deveria ser mantida sob suspeição; por esta desobediência, abusando das bênçãos de Deus” (John Calvin, Calvin’s Commentary, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 13, (Os 9.1) p. 309). “Prosperidade é como mofo ou a ferrugem” (John Calvin, Calvin’s Commentary, v. 15, (Zc 13.9) p. 403).

[15] Deveras me apliquei a todas estas coisas para claramente entender tudo isto: que os justos, e os sábios, e os seus feitos estão nas mãos de Deus; e, se é amor ou se é ódio que está à sua espera, não o sabe o homem. Tudo lhe está oculto no futuro” (Ec 9.1).

[16] João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.4), p. 26. Esta mesma linha de argumentação é seguida em outro lugar: “Onde, pois, o temor de Deus não é prevalecente, a confiança na prosperidade consiste no menosprezo e motejo de sua imensurável munificência. Segue-se disso que aqueles a quem Deus tem poupado nesta vida receberão sobre si a aplicação de um castigo mais severo, visto que têm adicionado sua rejeição ao convite paternal de Deus a suas demais perversidades. Ainda que todos os favores divinos sejam inumeráveis provas de sua paternal bondade, todavia, visto que às vezes Ele tem diferentes objetivos em vista, os ímpios se equivocam ao vangloriar-se de sua prosperidade, como se fossem bem-amados de Deus, ao mesmo tempo em que este paternal e liberalmente os sustenta” (João Calvino, Romanos, 2. ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 2.4), p. 81-82). Ver também: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 17.14), p. 346. Mais tarde, o puritano Samuel Willard (1640-1707), pregando em 24/07/1705, disse: “Assim como as riquezas não são evidências do amor de Deus, assim também a pobreza não é sinal de sua ira ou ódio” (Samuel Willard, A Complete Body of Divinity in Two Hundred and Fifty Expository Lectures,  MC Design, 2015, (Edição do Kindle),  Local 43270 de 55270). Vejam-se a mesma perspectiva de outros autores em: Leland Ryken, Redeeming the Time: A Christian Approach to Work and Leisure, Grand Rapids, MI.: Baker Books, 1995, p. 100).

[17]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 62.10), p. 580.

[18]João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.10), p. 170.

[19]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 30.6), p. 633.

[20]João Calvino, As Pastorais,  São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 6.17), p. 182.

[21]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 41.1), p. 240-241.

[22] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 3, (Sl 91.15), p. 458.

[23] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 56.12), p. 504.

[24]João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 42.

[25]J. Calvino, Institución de la Religión Cristiana, III.7.5. Ver também André Biéler, O Humanismo Social de Calvino, p. 72-74.

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